quarta-feira, 20 de março de 2013

Gil Pena - Estudo sobre o uso da memantina no “tratamento” para Síndrome de Down



Excelente artigo que Gil Pena garimpou:

Estudo sobre o uso da memantina no “tratamento” para Síndrome de Down.


Li com interesse o artigo recente de Boada et al. (2012)(1) sobre o emprego de antagonista de receptores NMDA (N-metil-D-aspartato) no tratamento para síndrome de Down. Particularmente o estudo endereça a possibilidade de que a terapia com memantina possa melhorar o resultado de testes neuropsicológicos, em avaliações de memória episódica e espacial, geralmente consideradas como hipocampo-dependentes.
Dois testes foram usados como avaliações primárias. O teste “PAL” – CANTAB Paired Associate Learning – consiste em caixas dispostas sobre a tela, que são abertas em ordem aleatória. Uma ou mais dessas caixas vão apresentar um desenho ou padrão. Os padrões inicialmente apresentados no interior das caixas são então apresentados no centro da tela, um de cada vez, e o participante deve apontar a caixa em que padrão correspondente estava originalmente localizado. Até 8 padrões podem ser apresentados. O teste é de concepção simples, mas desafiante. Vinte e uma medidas podem ser obtidas como resultado para um ensaio, incluindo erros cometidos pelo participante, o número de tentativas necessárias para localizar o(s) padrão(ões) corretamente, escores de memória e estágios completados.
Outro teste, com características semelhantes, é o Pattern Recognition Memory (PRM – memória de reconhecimento de padrão). Ao participante, é apresentada uma série de padrões visuais e ele tem de identificar, posteriormente, entre duas figuras, qual foi apresentada anteriormente. Os padrões são feitos de tal forma que é difícil de associar um nome às imagens, sendo por isso um teste de memória não verbal.
Vários outros testes foram avaliados como medidas secundárias. Entre eles, o California Verbal Learning Test-II (CVLT-II) – Short Form: (Teste de aprendizagem verbal – California). O teste mede a habilidade de aprender palavras, como um índice de memória verbal episódica de longa duração. Tal teste é conhecido por ser sensível ao funcionamento do hipocampo posterior, com base em estudos de imagem, e também já foi demonstrado que está prejudicado em populações com degeneração e lesões do hipocampo. Aos participantes, é fornecida uma lista de palavras, as quais são repetidas, em cinco ensaios. Seguem-se ensaios de memória e reconhecimento, após intervalos de 10 minutos. Medidas são obtidas conforme o participante consegue identificar corretamente os alvos corretos (soma de acertos nos testes) e a capacidade de discriminação, que leva em conta, o que acertou e também falsos positivos. Diferentemente dos testes anteriores, não consegui encontrar na internet versões disponíveis deste teste, para ter uma idéia prática de como é conduzido.
Um total de 14 medidas foram avaliadas, discutir cada uma seria trabalhoso e extrapolaria as finalidades desse comentário.
Dois grupos de participantes foram avaliados, um deles recebeu a memantina e outro recebeu placebo, por um período de 16 semanas. Nem os participantes, nem examinadores sabiam a que grupo pertenciam os indivíduos. Os indivíduos fizeram testes antes do início do tratamento e ao fim das 16 semanas. Cada indivíduo foi comparado consigo mesmo no início e no fim do tratamento e os dois grupos foram comparados entre si.
As medidas primárias (PAL e PRM) não produziram diferenças estatisticamente significativas entre os grupos. De todas as medidas secundárias, apenas uma das medidas do CVLT-II, resultou estatisticamente significativa (Total free recall).
A discussão de um trabalho dessa natureza pode ser feita por diferentes perspectivas. Há questões conceituais importantes sobre o desenho do estudo e riscos que os investigadores correm ao planejar o seu estudo e avaliar os seus resultados.
Há questões também conceituais relevantes sobre os fundamentos da “neurociência” que dão suporte à gênese de hipóteses, desenho de investigações e modelos de estudo.
Ainda, há questões conceituais relevantes sobre a síndrome de Down e a pessoa com síndrome de Down, que também merecem uma discussão.
Os investigadores científicos estão bem a par da natureza dos erros que podem estar associados aos seus estudos. São conhecidos como o erro tipo I e tipo II. Num estudo como esse, dois grupos foram estudados. Um que recebeu a medicação e outro que recebeu o placebo. Como hipótese nula, os investigadores postulam que não haverá diferença entre os grupos. O estudo é desenhado no sentido não de confirmar a hipótese, mas de rejeitá-la. Assim, se for encontrada uma diferença significativa entre os grupos, os investigadores fornecem subsídios para rejeitar a hipótese, indicando que há um efeito atribuído à  memantina, nas medidas de respostas obtidas, que foram diferentes entres os grupos.
Cada estudo cientifico tem chances de errar e, óbvio dizer, se essa chance for estatisticamente pequena, mais convencidos ficamos de que a afirmação produzida pelos autores do estudo merecem credibilidade. É um jogo de confirmação. O erro tipo I é aquele em que o pesquisador refuta uma hipótese nula, quando em realidade ela é verdadeira. Seria o caso em que tenha sido encontrada uma diferença entre os grupos, quando em realidade não há diferença. Em relação ao estudo em discussão, a única medida estatisticamente significativa foi a dada por uma das medidas associadas ao CTVL-II, resultado que aponta para a rejeição da hipótese nula. A maioria dos investigadores aceita que um nível razoável de erro, a conhecida probabilidade alfa, deve ser menor que 0,05 (ou 5%). Isso indica que há chance estatística de um estudo em cada vinte refutar a hipótese nula, quando na realidade ela não devia ser refutada. Ou seja, o estudo apontaria uma diferença entre o grupo tratado com memantina e o grupo placebo, mas essa diferença não existiria na realidade.
Se é possível errar por um lado, é também possível errar por outro. É o erro tipo II, em que o investigador não consegue refutar uma hipótese nula, quando na realidade ela é falsa. Em termos de possibilidade, há a chance de que a memantina tenha um efeito benéfico, mas o estudo, não tendo conseguido demonstrar uma diferença significativa entre os grupos não teve força suficiente para refutar a hipótese de não efeito. Por medidas econômicas, de praticidade, os pesquisadores aceitam cometer com maior frequencia esse tipo de erro. Na maior parte dos estudos, admite-se uma probabilidade beta de até 0,2 (ou 20%) para esse tipo erro. Ou seja de cada cinco estudos, um pode não conseguir refutar a hipótese nula, em em realidade seria falsa.
O estudo da memantina então não dá ainda uma resposta definitiva sobre o beneficio da memantina entre os portadores da síndrome de Down: não se conseguiu obter dados que pudessem rejeitar a hipótese de nenhum benefício. Exceto por uma das medidas obtidas (de um total de 14 avaliadas), os autores não demonstraram diferenças significativas entre os grupos.
Os autores desenharam o estudo no sentido de reproduzir nos seres humanos com síndrome de Down, os resultados observados em camundongos Ts65Dn, um modelo experimental para a síndrome. Por assim dizer, esperava-se (ou desejava-se) rejeitar a hipótese nula. Após a análise dos resultados, discutem-se aspectos do estudo que podem ter propiciado a ocorrência de um erro tipo II. O aprendizado do estudo é o de favorecer o desenho de outros estudos que, no futuro, possam rejeitar a hipótese nula, seja com a escolha de testes que tenham maior possibilidade de demonstrar uma diferença, seja por modificações no desenho do estudo (seleção e tamanho da amostra, tempo de tratamento, testes estatísticos, etc).
Um segundo ponto a comentar é o papel do hipocampo nos processos cognitivos, pergunta que a neurociência busca esclarecer, mas que no entanto procuro compreender desde outra perspectiva.
Não há como negar que o cérebro humano, em seus dois hemisférios, funciona globalmente, representando rede complexa de neurônios (e de outras células). Além dos elementos estruturais, mecanismos moleculares operam nestas células, mediados, estimulados e inibidos por outros mecanismos celulares.  Neurotransmissores, receptores, com suas enzimas quinase-dependentes, canais iônicos, fatores de transcrição, são elementos que trafegam entre as células e no interior das células, provocando alterações bioquímicas e eletrofisiológicas intracelulares, extracelulares e induzindo estas alterações em células vizinhas. É muito complexo. Mesmo um “simples” neurônio opera com tão numerosas moléculas, que a compreensão de seu funcionamento é desafiante. Em laboratório, é possível observar os efeitos de um composto sobre a inibição ou estímulo a determinado receptor, que provoca cascatas metabólicas intracelulares, com expressão do DNA, síntese protéica, alterações de potencial de membrana, capazes de originar padrões excitatórios variáveis sobre outras células, e destas a outras células, a outras, o cérebro, seus milhões e milhões de neurônios, haverá quem possa compreender o seu funcionamento? Olhamos o cérebro maravilhados, queremos entendê-lo, a mente ali guardada, a memória, a consciência.
A maioria dos estudos neurocientíficos demonstra um padrão de semelhanças entre as células neuronais humanas e a de outros animais, inclusive as de um molusco marinho, a Aplisia, que tem neurônios grandes, apropriados para a manipulação experimental. Diferentemente de outros animais (pelo menos assim pensamos), o cérebro humano é capaz de lidar com linguagem, que além de forma de comunicação, tornou-se instrumento do pensamento. Mais do que processos excitatórios e inibitórios neuronais, de síntese protéica ou outros mecanismos bioquímicos, o pensamento, a memória produzem-se pelo significado, algo que, se não extrapola a própria biologia do cérebro, a desafia.
São domínios de descrição distintos. Um que considera os elementos constituintes do cérebro, neurônios, moléculas, outro que considera todo o organismo, incluindo o seu cérebro, na relação que trava com outros organismos e com o mundo. No primeiro caso, que é visão digamos mais neuro-científica, não é incomum avaliar o cérebro como um conjunto de funções específicas, exercidas por áreas próprias ou grupos de neurônios, como a entrada, processamento, armazenamento e saída de “informações”. Os testes apresentados aos participantes do estudo seguem essa lógica. São baseados em ”informações” destituídas de significado, desenhos sem nome, sem sentido, que devem ser armazenadas, por certo tempo, gerando depois respostas, que são classificadas como boas ou ruim, conforme a reprodução congruente entre a entrada e a saída. Essa função está localizada no hipocampo, seja pela demonstração em tempo real da atividade neuronal nesta área em estudos funcionais de imagem, seja pela perda destas funções em indivíduos com lesão ali localizada.
Numa outra perspectiva, podemos avaliar a relação de todo o organismo (incluindo o cérebro) com outros organismos e o ambiente. Nesta perspectiva, compartilho da visão de Maturana, em que o cérebro funciona e organiza-se como um sistema fechado, cuja operação resulta do operar de seus elementos constituintes, sem que o meio externo possa produzir interações instrutivas sobre o organismo. As superfícies aferente e eferente do organismo não possibilitam trânsito de informação entre o próprio organismo e o meio, mas apenas ocasionam mudanças estruturais, como as que ocorrem entre duas células, num espaço sináptico. Como observador, posso fornecer explicações sobre como operam mecanismos de memória, atenção, etc, avaliando como ocorre a interação entre dois organismos, em seu espaço de conduta. Explicações são mecanismos gerativos, ou seja produzem o fenômeno que queremos explicar. Posso entender a memória recente, que corresponde à função do hipocampo, como andaimes ou rodinhas de bicicleta. São estruturas de pensamento que são necessárias por determinado período, enquanto uma forma de conhecimento se consolida, se sedimenta. Esse mecanismo gerativo possibilita um modelo de intervenção, que são os formatos de ação conjunta, a participação de um mediador que apresenta elementos da cultura, possibilitando o desenvolvimento das funções cognitivas.
Há portanto outras maneiras de compreender uma função psicológica.
Um terceiro e último ponto, o mais importante e necessário para essa discussão é sobre questões conceituais sobre a síndrome de Down e a pessoa com síndrome de Down. Neste aspecto, os autores do artigo pecam ao propor tratamento para a síndrome de Down, implicando que pessoas com trissomia do cromossomo 21 carregam defeitos constitucionais em seus circuitos neuronais que necessitem de correção farmacológica. Já desde há muito, procuro construir uma idéia diferente, propondo que as pessoas com síndrome de Down, não devam ser taxadas de doentes, pelo fato de terem um cromossomo 21 extra. Mesmo que possam me enumerar várias características que os diferenciam das pessoas euplóides, eu prefiro firmar no que guardam como semelhança, a sua essência humana, o inacabamento, a possibilidade de construção da competência, a capacidade de superação.
Se a tal ciência, a que se publica em artigos científicos, propõe que devamos tratar a síndrome (pela síndrome em si), devo discordar da ciência. Neste ponto conceitual básico, talvez tenha o artigo perdido toda a validade como ensaio científico. Tivessem os autores uma melhor indicação sobre o que tratar, poderiam ter alcançado resultados mais significativos.
Referência bibliográfica:
(1) Boada R, Hutaff-Lee C, Schrader A, Weitzenkamp D, Benke TA, Goldson EJ, Costa AC. Antagonism of NMDA receptors as a potential treatment for Down syndrome: a pilot randomized controlled trial. Transl Psychiatry. 2012 Jul 17;2:e141. doi: 10.1038/tp.2012.66. PubMed PMID: 22806212; PubMed Central PMCID: PMC3410988.


http://pedagogiadoconhecer.wordpress.com/2013/01/13/estudo-sobre-o-uso-da-memantina-no-tratamento-para-sindrome-de-down/

Alfabetização na Síndrome de Down - Pedagogia do Conhecer

Admiro muito o que Gil Pena escreve sobre inclusão no seu blog Pedagogia do Conhecer, suas observações sobre alfabetização são muito esclarecedoras, repito-as aqui:


Blog Pedagogia do Conhecer
Alfabetização
GIL PENA

Olá Roberta,
Muito legal o seu interesse em tentar “se encontrar” e ensinar ao seu aluno a ler e escrever. Vamos começar pelo começo: veja o seu aluno como seu aluno, não o veja como “SD”. Os comportamentos que ele apresenta têm de ser encarados como os comportamentos de um aluno, não como de um aluno com “SD”. Em toda e qualquer situação, aja com ele como agiria com qualquer aluno, em relação aos aspectos afetivos, de autonomia, das normas etc.
A segunda coisa é a confiança. Para ensinar, é necessário que você acredite na pessoa que vai aprender, que ela vai realmente aprender. Essa confiança gera o compromisso de que você vai investir tudo para que ela realmente aprenda. Se ela não entende uma coisa, explique de novo, de outra maneira, peça a um outro aluno que lhe explique, tente de outro jeito, se naquele dia não foi possível, pense de noite em alguma nova estratégia, em algo nunca pensado, e que  pode funcionar naquela situação. Invista na sua própria compreensão do problema, leia mais, pesquise, tudo para poder elaborar uma nova maneira de ensinar, não apenas para aquele seu aluno, mas para todos os seus alunos.
Um outro passo: aprofundar nos aspectos de aprendizagem da leitura e da escrita. Um “alfabetizador” tem de ter como companheiros, autores como Paulo Freire e Emilia Ferreiro (Também Myrian Nemirovsky, Liliana Tochinsky, Ana Teberosky). Aprender a ler e a escrever não é ser introduzido a um código. A escrita é muito além de um código, ela tem usos, finalidades, significados, que não podem ser reduzidos ao código. Hoje se chama tudo isso de letramento, mas a questão não é o nome que se dá. Desde que a criança nasce, ela está imersa num mundo onde a palavra escrita desempenha múltiplas funções e ela tem que gradativamente apropriar-se dessas funções, para fazer uso dessa valiosa ferramenta cultural. Em casa, também é fundamental que o uso da palavra escrita seja incentivado pelo exemplo dos pais, que fazem uma lista para ir às compras, lêem um livro técnico ou um romance, usam o computador, para comunicar-se ou para pesquisar determinado
assunto, vêm indicações escritas no trânsito, nos ônibus, nas lojas, etc…
Ainda, é preciso entender como ocorre esse processo de alfabetização. Há determinados estágios dessa construção que podem ser utilizados na elaboração de um diagnóstico. A partir desse diagnóstico, estratégias de intervenção são especificamente desenvolvidas para auxiliar o aluno a superar aquele estágio. Essa compreensão do processo de aprendizagem é importante, para perceber pequenos avanços que a criança faz, às vezes com grandes esforços. Há professores que consideram que a aprendizagem da leitura e da escrita é quase mágica: um dia o aluno está maduro e o conhecimento ”brota”. Mas não é assim: a leitura e a escrita são um conhecimento lentamente construído, pelo conhecimento das letras, a compreensão de que as letras correspondem a sons, mas que sozinhas as letras não produzem todos os  sons, que existem regras que orientam a ortografia, que o estilo para escrever um memorando é diferente do estilo um bilhete, que escolhemos palavras diferentes para situações diferentes… e por aí vai.
Para finalizar essa mensagem (que jamais esgotaria o tema), diria que esse aprendizado tem de ser particularmente prazeiroso. Há um grande investimento da criança nesse processo. Se ela não encontra um caminho (“até o seu professor ‘está perdido’), ela vê como inútil um grande esforço e cria grande resistência ao que está escrito, como algo que pertencesse a um universo do qual ela não faz parte. Cria-se um bloqueio que posteriormente é muito difícil de remover.
Bem, Roberta, só espero que a minha mensagem tenha lhe indicado um caminho (ou muitos caminhos). Fico a disposição para poder ajudar mais, se achar que os caminhos que indico podem ajudá-la
Alfabetização II
Olá a todos,
A alfabetização não é um bicho de sete cabeças, talvez de três, um cão cérbero, não sei mesmo se é essa a entidade, aquele bicho do Hagrid que tomava conta da pedra filosofal, na história do Harry  Potter.
A alfabetização, dizendo assim, é um marco, algo fundamental em  nosso adentramento dentro da cultura. A progressão na vida acadêmica depende da aquisição dessa ferramenta.
Em geral, não duvidamos que uma pessoa comum, se ensinada, conseguirá aprender a ler. Em geral, o não letramento atribuímos à falta de oportunidade de aprender. Não sei se todos temos uma idéia apropriada do que é a alfabetização, não é apenas o domínio do
código, decifrar palavras e sílabas, é desvendar o sentido, atribuir sentido. Escrever e ler, como ferramentas culturais humanas, são carregados de sentido, são usados para cumprir necessidades específicas do viver humano.
Antes de chegarmos a escola, já conhecemos a palavra escrita, sabemos de seu uso, há um empenho em compreendermos o que está escrito e nos esforçamos nesse sentido. A alfabetização, por assim dizer, tem uma pré-história, que é menosprezada.
O Fabio disse da confiança, mas tem algo mais na nossa relação com as pessoas com síndrome de Down que as distanciam da leitura. Muitos falamos que cada um tem seu conjunto de livros, sua pequena biblioteca, mas quantos nos dedicamos a deliciar as leituras com eles? Quantos, os convidamos a participar da elaboração de uma lista de compras, de ir ao supermercado com eles, procurando pelos produtos listados? E nos seus desenhos, o quanto nos preocupamos em oferecer detalhes, que possam ser acrescentados, como os olhos, sobrancelhas, cílios, etc, de modo que possam ir se aprimorando no cultivo desses detalhes. O desenho, como o escrito, é forma de representação. A primeira forma de codificar, decodificar o escrito é pelo reconhecimento do desenho da palavra, não a seqüência das letras.
Há peculiaridades no aprendizado das pessoas com síndrome de down. Mas isso é muito confundido por aí. Não há necessidade de criar um método. Nesse processo todo, o que é necessário é só ensinar. Uma pessoa com síndrome de Down tem mais
dificuldade no aprendizado espontâneo, de captar um sentido naquilo que fazemos, de compreender a sequência pela qual operamos, simplesmente vendo-nos fazer. É preciso mostrar-lhes o que fazemos, porque fazemos.
Todo o tempo, estamos lendo o mundo. Paramos no cruzamento ao ver a placa de pare, mas também no sinal vermelho. Para nosso filhos com síndrome de down, temos de mostrar que o que nos conduz são essas mensagens disponíveis: a placa
com o nome da rua onde moramos, o número da nossa casa, seu nome na sua merendeira, etc.
Alfabetizar é um passo no aprendizado dessa leitura maior de mundo. Um passo que fica grande demais para aqueles a quem omitimos o mundo, não o revelando ou o entregando já lido.
O método, a cartilha surge no mundo em que impera o aprendizado espontâneo dos comuns. A leitura de mundo se oferece a seus olhos como um aprendizado intrínseco. Chegam a escola já sabedores de muita coisa. A escola atua no sentido de sistematizar esse aprendido, mais do que ensinar.
No aprender a ler, vale muito conhecer do uso da leitura, da escrita, esforçar na aquisição da ferramenta. Não é uma tarefa fácil para criança nenhuma. É uma construção, com muitas tentativas, erros, hipóteses, testes. É esse experimentar que os leva a frente. Um bom professor conhece esse processo, esse experimentar, ajuda o aluno no formular de hipóteses, compreende o caminho de seu construir e o estimula nessa construção. Não o repreende ou desanima no equívoco: esse é parte do caminho. È um processo sofrido. É possível que não queiram ir a escola, mesmo por medo de não conseguir.
Nesse processo, não há diferença entre a pessoa com síndrome de Down ou o comum. Ambos aprendem formulando hipóteses, testando essas hipóteses, errando e acertando. Tornam-se leitores na medida em que descobrem o mundo que está aí para ser lido.
Há ainda, acredito, uma certa incompreensão da relação entre “oralidade” e “escrita” e parece que alguns ficam esperando uma certa “consciência” fonológica para dar andamento no ensino da leitura. Há mesmo, me parece, uma dependência, mas não há necessariamente uma precedência de uma sobre a outra. O escrever/ler ajuda na construção da oralidade, fazendo caminho inverso do que usualmente é esperado.
Se devem aprender a ler, e podem, é melhor que seja no tempo de aprender. Tempo de aprender é tempo de ensinar. Ensinar é mostrar o mundo, desde cedo, tão cedo quanto estejamos vivendo no mundo. Porque os vamos deixando crescer sem ensinar-lhes (mostrar) o mundo?
Não posso, por último deixar de sugerir que leiam alguma coisa da Emilia Ferrero que é quem bolou e percebeu essa coisa muito legal da construção da escrita.


terça-feira, 12 de março de 2013

Menos preconceito ajuda pessoas com Down a ter vida amorosa plena



Menos preconceito ajuda pessoas com Down a ter vida amorosa plena

Julliane Silveira - UOL

  • Samantha Quadrado,25, trabalha como auxiliar administrativo e quer morar sozinha daqui a dois anos
    Samantha Quadrado,25, trabalha como auxiliar administrativo e quer morar sozinha daqui a dois anos


Samanta Quadrado, 25, está investindo aos poucos em um novo relacionamento, iniciado há seis meses. Depois de terminar um namoro de quatro anos, ela quer ir com com calma.  "Estamos nos conhecendo", conta.  Samanta mora em São Paulo e está "ficando" com carioca Breno Viola, um dos atores do filme "Colegas", de Marcelo Galvão.

Eles se conheceram na pré-estreia do filme, no Rio, em setembro do ano passado. Desde então, se encontram quando é possível e conversam pelo Skype. "Meus pais sempre apoiam meus namoros. Posso conduzir minha relação sozinha, tenho autonomia", explica. Ela trabalha como auxiliar administrativo em uma editora, frequenta grupos de apoio para pessoas com Down e tem planos de morar sozinha: "Daqui a uns dois anos. Já tive muitas conquistas, quebrei muitas barreiras. Será mais uma delas", diz.

Samanta faz parte de uma geração de pessoas com Down que cresceu mais distante do preconceito e consegue ver o futuro em condições mais igualitárias. O avanço da medicina e o melhor conhecimento das peculiaridades da síndrome permitem que esses jovens estudem, trabalhem e se relacionem mais.
"Percebemos um aumento no número de pessoas com Down que namoram, têm uma vida social boa. Há mais esclarecimento da sociedade, as famílias permitem mais e existem mais oportunidades", afirma o geneticista Zan Mustacchi, um dos maiores especialistas na síndrome de Down no Brasil.
 
O nível mais aprofundado de informação sobre a síndrome reflete até na expectativa de vida, que, em 1929, era de nove anos, em média. Hoje, a previsão é de 60 anos.

"Por tudo isso, temos de pensar que eles têm direito a uma vida plena. E essa vida inclui a afetividade e sexualidade. Vejo que ainda existe resistência nas famílias em enxergar que os filhos, embora tenham uma deficiência, devem ser livres para se relacionar", diz a advogada Maria Antônia Goulart, coordenadora do Movimento Down. "Parece que, quando o filho tem uma deficiência intelectual, surge a certeza nos pais de que ele não terá vida sexual. Até pais mais progressistas negam isso".
 
  • Arquivo pessoal
    "Sou um cara romântico, preparo declarações de amor", conta Pedro Brandão Carrera
Mas nem sempre a vida afetiva é perfeita –regra que vale para todos. Pedro Brandão Carrera, 18, sempre estudou em escola regular e se apaixonou por meninas de sua classe sem ser correspondido. Voltava de baladas sem beijar na boca, apesar de paquerar bastante.  "Ele chegava em casa chateado, dizendo que não tinha ficado com ninguém", conta a mãe Ana Cláudia Brandão.

Há um ano, conheceu a namorada em um grupo de jovens com comprometimento intelectual e está apaixonado. "Sou um cara romântico, preparo declarações de amor para ela", conta.

Colaboração dos pais
 

Ana Cláudia conta que colabora para que o namoro do filho progrida, por exemplo, levando o casal ao cinema. "Nós, os pais, não sabemos se eles veem o filme ou ficam se beijando", diz. "Eles precisam que a gente leve e busque. Nesse ponto é mais complicado, porque os pais devem dar uma força para que o namoro dê certo. As descobertas perdem um pouco da naturalidade", afirma.
 
Se a evolução do namoro é monitorada, ao menos os planos podem ser feitos a dois. Pedro deseja se casar com a namorada depois que terminarem a faculdade. Ele quer ser chef de cozinha e abrir um restaurante de massas. "Adoro cozinhar e faço um macarrão ótimo".

Diferentes?

O desejo e a vontade de estar com alguém é o mesmo em todos os jovens. "Tenho um filho adolescente sem a síndrome e percebo que suas questões são as iguais às dos jovens com Down que acompanho no grupo", diz Maria Antonia.

O desenvolvimento da sexualidade ocorre na mesma época, mas nem sempre o amadurecimento emocional acompanha.  "Pessoas com Down podem extrapolar e ir além de situações palpáveis, acreditando que é possível ter uma relação com quem não gosta delas ou com um artista. Acreditam nisso de forma ingênua", diz Zan Mustacchi.
Por isso, a orientação da família é fundamental, não só para evitar decepções como para diminuir riscos de abusos. "Quando o assunto não é tratado, a pessoa com Down perde o referencial. Tudo aquilo que não é dito é fantasiado e isso tende a se distanciar do que se espera no trato social", diz Goulart.
Os jovens com Down também precisam aprender sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez. As chances de concepção de um casal em que ambos têm Down é de 80%, segundo Zan Mustacchi. Quando um dos parceiros não tem a síndrome, o número cai para 50%. Homens com Down podem ser inférteis, mas não é regra. "O fato de haver mais homens com fertilidade reduzida do que férteis não quer dizer que não há possibilidade de gravidez", diz o geneticista.

Cavaleiro quer competir nos Jogos Olímpicos

  • Arquivo pessoal
    Cláudio Arruda, 27, quer competir nas provas de hipismo da Olimpíada de 2016
Cláudio Arruda, 27, quer competir nas provas de hipismo da Olimpíada de 2016 e, para isso, treina três vezes por semana na Escola de Equitação da Sociedade Hípica Paulista.  Apaixonado por cavalos, pratica o esporte há doze anos e incluiu o animal também na rotina do seu trabalho: desde 2011, atua como instrutor assistente na Hípica do Pônei Clube Brasil. "Os cavalos servem como terapia e devem ativar o melhor lado das pessoas", explica.
 
Ele foi vice-campeão paulista de hipismo em 2009, competindo com pessoas sem deficiência. Perdeu o título em 2011 só porque seu cavalo refugou no terceiro dia de provas. Cláudio viaja com frequência a Bananal, no interior de São Paulo, onde participa de cursos relacionados a seu trabalho. Roda o país também para ministrar palestras em congressos sobre Down e esteve em Nova York no ano passado, quando participou de um lançamento de um livro na ONU sobre comunicação para quem tem algum comprometimento intelectual.
 
A vida pessoal também vai bem. "Eu faço de tudo. Paquero muito, vou para baladas, shows. Sou fanático por música sertaneja, de Almir Sater a Victor e Léo", conta. Mas, recentemente, Cláudio teve uma decepção amorosa, com o fim de seu último relacionamento. "Eu cheguei a amá-la. Mas a gente tem que levar a vida, seguir em frente com cabeça erguida".

sábado, 9 de março de 2013

Filme criado pela M51 para a nova campanha da Fundação Síndrome de Down


Chegou a hora de comunicar os diferenciais ao invés das diferenças. E fica a pergunta: Por que? Compartilhe para que outras pessoas possam refletir sobre o "por que?"

http://www.youtube.com/watch?v=vgpJme4cyqY

segunda-feira, 4 de março de 2013

Sexualidade e deficiência - tema controverso e pouco conhecido - base do preconceito.

Relatos de professores sobre manifestações sexuais de alunos com deficiência no contexto escolar

Ana Cláudia Bortolozzi Maia
Universidade Estadual Paulista, Bauru-SP
Maria Salete Fábio Aranha
Universidade Estadual Paulista, Marília-SP

RESUMO

O estudo investigou as manifestações sexuais de alunos com deficiência, a partir do relato de 40 professores. O conteúdo desses relatos, obtidos através de entrevistas, foi organizado em agrupamentos temáticos: a não-ocorrência de manifestações sexuais, a ocorrência de comentários de natureza sexual e de comportamentos sexuais. As manifestações sexuais dos alunos, relatadas pelos professores, foram consistentes com o esperado para sua faixa etária, sem evidência de padrões atípicos. Nos poucos casos em que foram relatadas manifestações inadequadas, estas foram provocadas por determinantes ambientais e não por características inerentes à deficiência. A maioria dos professores julgou a sexualidade dos alunos segundo seus próprios valores, o que indica uma lacuna na formação dos professores em relação à educação sexual.

Palavras-chave: sexualidade; deficiência; concepções de professores.

ABSTRACT
Teachers’ reports about sexual expressions of disabled students in academic environment
The study investigated sexual expressions of disabled students at school, from the viewpoint of 40 teachers. The content of the reports, obtained through interviews, was organized in thematic groupings: the non-occurrence of sexual expressions, the occurrence of sexual nature comments and sexual behaviors. The students’ sexual expressions, according to the teachers’ reports, were the ones expected for their age, with no evidence of atypical patterns. In the few cases where inadequate expressions were reported, they were considered as caused by the environment and not as an inherent characteristic of the disability. Most of the teachers judged the students sexuality based on their own values, indicating a gap on teachers training concerning sexual education.

Keywords: sexuality; disability; teachers’ conceptions.

INTRODUÇÃO

O tema da sexualidade, em diferentes contextos educacionais, vem sendo debatido intensamente. Po- rém, no âmbito da educação especial, as propostas de intervenção em relação à sexualidade parecem extre- mamente limitadas. Ainda há pouca discussão sobre a sexualidade da pessoa com deficiência, tanto no ambiente do ensino especial (escolas especiais ou classes especiais), quanto no ambiente do ensino co- mum, considerando a opção política do país pela construção de sistemas educacionais inclusivos e a inserção de muitos alunos com diferentes deficiências em escolas regulares.

Vários autores têm defendido que toda pessoa com deficiência é uma pessoa íntegra na sua sexualidade. Isto é, independentemente das possíveis limitações e complicações que possam ocorrer na manifestação sexual, ninguém torna-se assexuado em função de uma incapacidade física, sensorial ou mental (Blackburn, 2002; Buscaglia, 1997; Gherpelli, 1995; Glat, 1992; Maia, 2001a; Pinel, 1993).

Compreendemos por sexualidade um conjunto de concepções e valores que envolvem a intencionali- dade humana e a expressão afetiva de cunho social e histórico. A sexualidade abarca, então, uma ampli- tude de condutas humanas, para além de sua genita- lidade e não deve ser entendida, exclusivamente, como sinônimo de sexo, relação sexual, orgasmo, ór- gãos sexuais, mas sim, na sua dimensão ampla e cultu- ral que abrange diferentes aspectos como o amor, relacionamentos afetivos e sexuais, a sensualidade, o erotismo e o prazer, a expressão da identidade e dos papéis sexuais etc. (Chauí, 1985; Guimarães, 1995; Maia, 2001b; Nunes, 1987). Neste sentido, uma pes- soa jamais pode ser considerada assexuada, pois a sexualidade é inerente ao ser social.

Há duas décadas, a literatura vem apontando que, em geral, a sociedade encara a sexualidade da pessoa com deficiência como sendo patológica, isto é, por um lado, a sexualidade é compreendida como angelical, infantil ou até mesmo inexistente; e, por outro, uma sexualidade instintiva, agressiva, animalesca e incontrolável. Neste sentido, é comum o entendimento da sexualidade da pessoa com deficiência sob essas duas premissas: ou tais pessoas são vistas como anjos, quando a sexualidade é reprimida e não manifesta, ou como feras, quando é expressa, explícita, e muitas vezes, inadequada. Sabemos que, nos dois casos, há uma percepção distorcida sobre a vida afetiva e sexual dessas pessoas (Amaral, 1994; Amor Pan, 2003; Dall’Alba, 1992; Denari, 2002; Gherpelli, 1995; Giami & D’Allones, 1984; Glat, 1992; Tang & Lee, 1999; Vasconcelos, 1996).

Assumpção Júnior & Sprovieri (1987), Edwards (1995), Gherpelli (1995), Pinel (1993) afirmam que, para a pessoa com deficiência, a descoberta do corpo e do prazer em manipulá-lo pode ocorrer tardiamente, na puberdade, quando o corpo já está desenvolvido; os deficientes podem manifestar inadequadamente essas condutas por falta de aprendizado, o que pode levá-los à ansiedade e a sofrer repressões sociais. Com o avan- ço da idade, a socialização e a interação com outras pessoas podem ficar ainda mais restritivas, limitadas ao ambiente da família e da escola, de modo que muitas pessoas com deficiência podem ter dificuldades para discriminar códigos de conduta e regras sociais. Por isso, muitas pessoas compreendem a sexualidade da pessoa com deficiência como incontrolável em relação aos desejos e comportamentos, o que é, na verdade, fruto de uma educação inadequada em rela- ção a essa questão e não a um atributo inerente e imutável, próprio à deficiência.

Os autores Assumpção Júnior e Sprovieri (1987) e Maia (2001a) reforçam a idéia de que o desenvolvi- mento de uma sexualidade adequada e prazerosa, para essas pessoas, vai depender da elaboração e da aplicação de estratégias educacionais eficazes, que proporcionem uma expressão saudável da sexualidade para que esta não seja encarada como diferente ou patológica. Isso porque, segundo Anderson & Kitchin (2000), Amor Pan (2003), Blackburn (2002) e Buscaglia (1997), em geral, pessoas com deficiência são privadas de orientação sexual e é essa desinformação geral que estimula o preconceito e restringe o direito dessas pessoas ao exercício de uma vida sexual livre, plena e satisfatória. Outros autores, como Dall’Alba (1992), Evans & McKinlay (1989), Russell & Hardin (1980), ressaltam que as pessoas com deficiência, em geral, seriam beneficiadas com a orientação sexual, fazendo-se necessário, para se atingir os mesmos objetivos educacionais, a utilização de recursos específicos e adaptados a diferentes limitações.

Na adolescência, as pessoas com deficiência, por estarem expostas às mesmas normas sociais que as não-deficientes, anseiam pelo estabelecimento de uma relação amorosa e poderão manifestar o interesse por relacionamentos afetivos e sexuais (Amaral, 1994; Amor Pan, 2003; Behi & Behi, 1987; Edwards, 1995; Gherpelli, 1995; Koller, Richardson & Katz, 1988, Zetlin & Turner, 1985). Para Buscaglia (1997), se a pessoa com deficiência puder vivenciar uma maior interação social, relacionando-se com outros jovens na sala de aula ou em outras atividades, é provável que ela queira namorar, como os demais colegas o fazem. Dependendo da natureza das deficiências e das suas especificidades podem ocorrer diferentes situações de ansiedade, auto-imagem negativa e baixa confiança em maior ou menor grau.

Glat (1992), comenta que é um estereótipo associar aos deficientes mentais uma incapacidade de expres- sar suas emoções, desejos e sentimentos. A mesma afirmação cabe em relação a qualquer tipo de deficiência. A autora observou que entre os jovens com deficiên- cia mental estudados, havia um baixo grau de intera- ção social e as amizades e relacionamentos existentes eram entre colegas da mesma instituição, fato ainda mais recorrente tratando-se das mulheres. As experiências de namoro relatadas por eles limitavam-se a contatos físicos restritos e a algum grau de intimidade leve, sem relações sexuais. Os conhecimentos sobre sexualidade, funções corporais, reprodução e nascimento e métodos anticoncepcionais eram precários e superficiais. Para ela, a pouca informação a respeito de aspectos básicos da sexualidade, reflete uma educação sexual repressora, proibitiva e silenciosa, e também um acúmulo de informações mal esclarecidas e deturpadas, pois “é a infantilização e o isolamento social, e não seu quociente intelectual ou problema neurológico que os impedem de gozarem de uma vida amorosa plena e satisfatória” (Glat, 1992, p. 72). Pueschel & Scola (1988) defendem que toda criança com deficiência deve ser orientada para que, quando chegue ao período adolescente, já tenha informações sobre seu corpo e sobre as mudanças que nele ocorrerão, pois isso pode ajudá-las a se envolverem, na idade adulta, em relacionamentos saudáveis. Para esses autores, a orientação, sobretudo dos pais e da escola, é importante para garantir o treinamento de habilidades sociais e sexuais.

Segundo Blackburn (2002), nas últimas duas décadas, aumentou substancialmente o número de pessoas com deficiência que chegam à idade adulta devido aos avanços médicos e científicos. Todavia, apesar desses avanços, poucas pesquisas relacionadas à sexualidade e às deficiências foram publicadas. A escassez de publicações sobre o tema pode reforçar o mito, injustificado, de que a pessoa com deficiência não tem sentimentos e desejos sexuais ou de que esse desejo é exagerado e incontrolável.
Este estudo investigou as manifestações sexuais de alunos com diferentes deficiências, seja no contexto do ensino especial ou do ensino comum, a partir do relato de professores. Na hipótese de que os resultados contribuam para esclarecer eventuais preconceitos e idéias distorcidas acerca de supostas limitações ou exacerbações da sexualidade atribuídas à deficiência, esperam-se acréscimos metodológicos de conteúdo e de estratégias, para consolidar futuras propostas de ação educativa voltada à sexualidade do deficiente no contexto escolar. Isto porque, reconhecemos como necessário e urgente, no cenário atual da inclusão social, o oferecimento de uma orientação sexual adequada, ética e respeitosa a todos os alunos, inclusive aos deficientes.

MÉTODO Participantes

Participaram deste estudo 40 professores, lotados em cinco instituições educacionais do município de Bauru, cidade do interior do estado de São Paulo, sendo três escolas estaduais (A, B e C) e duas escolas especiais (D e E). Vinte professores ensinavam em classes comuns do ensino regular e vinte, em classes especiais, em escolas comuns e em escolas especiais. Nas escolas regulares, cada professor tinha, em sua sala de aula, pelo menos um aluno com deficiência, já que participavam do projeto de construção de escola inclusiva. Entre os professores do grupo do ensino comum, 19 eram mulheres e apenas um era homem; no grupo do ensino especial, todas eram mulheres.

Materiais

Foram utilizados materiais de diferente natureza: a) material de consumo: fitas de gravação em áudio de 60 minutos de duração e protocolos de registro (ficha de cadastro, roteiros); b) equipamento: um gravador, mini cassete recorder tipo portátil e c) um roteiro de entrevista, como instrumento de coleta de dados. A versão preliminar do roteiro de questões da entrevista foi aplicada na situação piloto em três professoras, similares aos participantes da amostra, para aperfei- çoá-lo, tentando atingir melhor aos objetivos propostos.

Procedimento

Todos os participantes foram previamente informados sobre as finalidades e procedimentos da pes- quisa. Tendo concordado com o procedimento, assina- ram um termo de consentimento informado e voluntá- rio. Tais cuidados visaram preservar o exercício da auto-determinação dos participantes, adotando as melhores providências éticas na pesquisa.

O local da coleta de dados foi a escola em que o professor trabalhava, em uma sala reservada, com a privacidade necessária para a entrevista, em horário de trabalho coletivo (HTPCs), previamente agendado.

A entrevista foi realizada, individualmente, com cada professor. No início da entrevista, a pesquisadora
registrava um código para a identificação do professor e dados gerais da aplicação (data, horário e local), sem gravação, procurando também garantir condições mínimas de rapport antes de se iniciar a interação verbal. A pesquisadora guiou-se pelas questões do roteiro, alternando a ordem das questões ou acrescentando outras, à medida que o professor relatava sobre os temas investigados.

O roteiro de questões visava estimular o professor a falar sobre como ele percebia (ou não) as manifestações sexuais dos alunos com deficiência no ambiente da escola em que ele lecionava.
A análise dos dados foi feita, essencialmente, por meio da análise qualitativa e foi realizada nos seguintes passos: a) transcrição, na íntegra, das 40 entrevistas, b) apresentação dos relatos transcritos, de forma que os relatos considerados pela pesquisadora como relevantes, fossem destacados, tendo como parâmetro os seguintes eixos teóricos: o processo de educação e repressão sexual e o desenvolvimento psicossexual na infância e adolescência; c) análise dos relatos por meio de agrupamentos temáticos, em classes de res- postas, relacionados às questões teóricas que envolviam o tema das manifestações da sexualidade do aluno na escola.

RESULTADOS

Os relatos dos professores foram agrupados nos seguintes conjuntos temáticos: a) não manifestação da sexualidade entre os alunos, b) manifestações sexuais relatadas como comentários ou perguntas e c) com- portamentos sexuais. Reconhecemos como comportamento tanto as manifestações físicas, quanto o relato verbal; porém, nesta análise, optamos por diferençar esses comportamentos quando a expressão sexual dos alunos foi compreendida pelos professores como uma ação, daquela compreendida como um diálogo.

Os agrupamentos temáticos foram organizados em classes de respostas, não mutuamente excludentes.

1.1 Relatos sobre a ausência de manifestações da sexualidade entre os alunos com deficiência.

Muitos professores do ensino comum (P1C, P2C, P4C, P9C, P14C, P17C, P19C e P20C) compreendem que não ocorrem comportamentos nem comentários sobre sexualidade entre seus alunos com deficiência, como mostram os relatos:

P – Olha, na verdade a... L. ela é bem calminha, ela quase nem conversa, ela nem abre a boca. Então ela fica sempre sentada tão quieta que a gente até esquece dela. Então ela num... não dá pra notar a sexualidade dela (P2C).
P – [...] ...o R. ele é, assim, tão menino, criança, sabe? Que ele, assim, ele vive a infância. Eu não noto nada de sexualidade no R. Ele não faz um comentário maldoso, ele não faz uma brincadeira. Eu tenho crianças que quando eu fui dar o aparelho reprodutor, deram um trabalho danado. Alguns, por vir fazer gracejos, outros de ficar inibido (P19C).

Estes professores parecem desconsiderar que todos somos sexuados e inevitavelmente expressamos a nossa sexualidade. Parece que o que ocorre, na verdade, é que os professores não atentam senão para a manifestação de comportamentos considerados problemáticos ou inadequados, desconsiderando, por exemplo, a idéia de que a sexualidade é inerente à pessoa em si, e que isso inclui as manifestações de afeto, prazer, desejo, enamoramento etc.

Gostaríamos de chamar a atenção para o comentário da professora P2C a qual argumenta que sua aluna com deficiência auditiva “fica sempre sentada tão quieta que [...] até se esquece dela [...] então [...] não dá pra notar a sexualidade dela”. O fato de essa professora chegar a ponto de se esquecer da presença da sua aluna sugere que: primeiramente, a menina provavelmente realiza poucas atividades que exigem interação com os colegas da sala, o que leva a crer que a professora não tenta envolvê-la nessas atividades. Em segundo lugar, uma vez que muitos dos comportamentos considerados inadequados pela maioria dos professores ocorrem, em geral, para “chamar a atenção”, o comportamento de permanecer quieta e sentada pode levar a professora a esquecer ou ignorar a presença de um aluno na sala de aula.

Essa mesma professora admite ter dificuldade em se comunicar com a sua aluna com deficiência, especialmente devido ao fato de ela apresentar problemas de fala, o que pode ser uma variável a ser considerada no afastamento da professora em relação à aluna.

Nenhum professor do grupo do ensino especial relatou não ocorrer nenhuma manifestação sexual entre seus alunos com deficiência na escola.

1.2 Relatos de diálogos sobre sexualidade entre os alunos com deficiência

Os professores do grupo do ensino comum, P3C, P7C, P10C, P11C, P12C e P15C, relatam que seus alunos elaboram perguntas ou comentários sobre se- xualidade sobre os seguintes temas: concepção, corpo humano, menstruação, higiene, doenças sexualmente transmissíveis e namoro, sendo esse o mais freqüente. Alguns relatos exemplificam:

P – [...] Ele fala: “Olha que bonita aquela ali”, né? [...] Pra mim. E pros colegas também: “Olha que bonitinha eu vou namorar ela”. “Cê quer namorar comigo?”. Ele faz isso. [...] ele é muito engraçado, todo mundo leva na brincadeira, né? Aí, às vezes eu falo: “Olha gente, agora não é hora de falar sobre namoro” ou “Você quer namorar?” “Cê acha que já tá na idade de namorar?” “É bom namorar, vocês também vão ter horário certo pra namorar, mas agora a gente tá estudando, vamos continuar?” (P12C).

P – Ah, ela faz sim, com os colegas, que eu percebo, né? Que as meninas tão falando de alguém, e coisa e tal, assim e eu já falei, né, sobre menstruação, já falei na sala, sobre preservativo, às vezes eu falo sobre alguma doença. Então sempre, né, a gente tem que tá falando sobre isso: a higiene do corpo, principalmente as meninas na época que tão menstruadas... Ela ouviu, assim, entre aspas, com atenção, assim, porque é... muitas passam do lado e eu procuro passar pra ela, mostrando ou mesmo escrevendo alguma coisa que eu já falei, não é sempre, não... foi quando eu falei de higiene, sabe? uma coisa bem até superficial, mas acho que eu passei o importante sobre isso (P15C).

O diálogo sobre sexualidade é mais comum entre os alunos do que com o professor. As justificativas apontadas pelos professores para isso foram os sentimentos de vergonha e preconceito dos alunos, ou o fato de eles já terem recebido informações de uma outra escola ou no ambiente em que vivem. Alguns professores não se envolvem nas conversas dos alunos. Outros, no entanto, tentam se aproximar e manter um diálogo que pudesse esclarecê-los sobre a sexualidade: P3C, P11C, P12C e P15C.

Pela análise dos relatos, é possível afirmar que não há nenhum comentário que se pudesse considerar excêntrico para a idade dos alunos; é interessante também que todos eles surgiram espontaneamente, isto é, em nenhum momento a escola ou o professor organizou atividades que permitissem a expressão das dúvidas dos alunos sobre o tema. Além disso, as professoras que responderam aos alunos utilizam como referência suas opiniões e não um corpo de conhecimentos científicos sobre o tema.

No grupo do ensino especial, quase todas as professoras relatam que seus alunos elaboram perguntas ou comentários sobre sexualidade entre si ou diretamente à professora, referentes aos seguintes temas: beijos, sensações corporais, gravidez, métodos anti- concepcionais e namoro, sendo esse também o mais freqüente. Os relatos ilustram:

P – [...] Eles falam bastante entre elas [...] Elas procuram nós, assim, quando elas vêem que elas tão muito apaixonadas ou senão vê que não tem solução. [...] “a escola é um lugar onde não é pra namorar, a gente pode paquerar mas não pode namorar”. Elas já sabem da regra da escola, né? Então, eu falo assim: “Eu não posso ensinar você a namorar porque ninguém nasce sabendo a namorar”, né? Porque elas querem que eu converse com o menino pra começar a namorar elas, sabe? Então eu falo pra elas que “Não”, e elas “Que que você acha?”. “Eu acho que você tem que andar mais bonita, arrumar o cabelo, quem sabe ele repara em você? Porque eu não acho legal você ficar aí assanhada, que- rendo agarrar ele...”, né? Então, assim, eu mos- tro o comportamento correto pra que ela não fique ah... muito assim, né? Se expondo, sabe? De tá agarrando o menino? (P7E).

P – Eles falam assim: “que tá apaixonado, que sente amor, que têm carinho pela pessoa” e de casamento [...] Então, alguns, é... têm preconceito contra os colegas, assim. Então, assim (risos). Tem... um aluno meu que ele fala, assim: “Não, eu não. Jamais eu namoraria alguém da [nome da Escola Especial]. Então, por quê? Aí, conversando com... a irmã. É... ela falou que... “quando ele fala de namoro... “se ele namora aqui ou não?”, ele fala: “Imagine que eu vou namorar alguém da [nome da Escola Especial] pra ter filho com o pé torto? Filho todo torto? Eu não quero filho torto, quero namorar alguém saudável” (risos) (P10E).

P – [...] ...sem dúvida, eles conversam muito. Eu acho que é porque... eles tão nessa fase... né, adolescência... eles trocam muito, eles falam besteiras também, sabe, eu pego eles falando [...]. Eu trouxe camisinha, abri e mostrei pra eles como usa. Às vezes eu fico com medo... a gente tá passando conceitos pra eles, né, porque a gente fala: “Olha, só pode usar casando”, sabe, eu já me peguei falando assim. Eu falo: “Ó, depois que casar, vai usar”. Mas, eu não sei, assim, se eles... o que que fica na cabeça deles, né, porque eles sabem que têm meninas que casam grávidas, que têm mães solteiras, que eles sabem que... que tem meninas surdas que transam com o namorado... então, assim, eu não sei o que fica na cabeça deles quando eu falo que “Olha, que é casando, precisa casar... depois, aí, é que vai usar, sabe? Mas, ao mesmo tempo, eu também falo: “Ó... tem doença, precisa usar (risos) camisinha”. Então, eu não sei como é que fica isso na cabeça deles. A gente, assim, entra em contradição (P1CE).

As professoras P9E, P10E e P13E, ensino especial, afirmam que não interferem quando seus alunos comentam sobre sexualidade, o que pareceu ocorrer mais por respeito aos alunos do que por omissão em orientá-los. As demais, entretanto, relatam que diante das falas dos alunos tentam se aproximar e manter um diálogo que possa esclarecê-los e fica evidente que, em muitas situações, elas explicitam valores e con- cepções pessoais a respeito de temas como casamento, traição, gravidez etc. Além disso, não só expõem seus valores pessoais, como também procuram generalizá- los para os seus alunos, impondo regras de comportamentos que julgam ser as mais corretas. Por exemplo, a professora P7E impõe sua opinião às alunas afirmando que “não acha legal ficar assanhada, querendo agarrar o colega” e “mostra o comportamento correto”. P1CE percebe sua própria contradição quando condiciona o uso da camisinha numa relação sexual ao casamento, embora reconheça que nem sempre essa relação é necessária.

Outra questão interessante a destacar é a professora P10E relatando que, entre seus alunos há discriminação e preconceito, quando se trata de escolher um parceiro(a) amoroso(a). Dentro da Instituição Especial, há alunos com diferentes deficiências e ela conta que o aluno com deficiência mental, por exemplo, rejeitaria, para namorar, uma aluna com deficiência física (pé torto), desqualificando as pessoas da mesma es- cola e sob as mesmas condições em que ele estuda: o ensino especial.

1.3 Relatos de comportamentos sexuais entre os alunos com deficiência

Alguns professores do ensino comum relatam que seus alunos expressam sua sexualidade por meio de comportamentos, na maioria, referentes a expressões de afetividade, como toques, beijos e abraços e, sobretudo, o namoro. Os demais comportamentos citados foram a masturbação, a dança e sorrisos maliciosos. Apresentamos alguns exemplos de relatos nos sub-agrupamentos:

Comportamentos afetivos: toques, beijos, abraços, namoro

P – [...] Ele, ele é superassanhado, tem um fogo... Tanto que na sala, ele, assim, quer namorar todas as meninas, quer ficar beijando, abraçando [...] ele é terrível... com todo mundo, ele pede todas as meninas em namoro, quer ficar beijando, fica superassanhado. Ele é, assim, uma criança extrovertida, né? Então ele de- monstra mais (P12C).

P – [...] eu observei ela esse ano que ela vem com hábitos,... muito assim, de abraçar os alu- nos, ela foi,... incentivada... a dar, assim, muito carinho e ela tava, ...partindo pra sexualidade. Eu comecei a notar que o abraço dela não era só um abraço de amizade. Ela abraçava só os meninos, ficava acariciando os meninos, fazendo carinho, assim, sabe ... despertou muito a sexualidade dela. [...] Então, eu isolei, separei, coloquei ela sentada com uma menina e não tinha essas coisas, esses abraços. [...] E eu notei que melhorou muito esse lado da sexualidade dela [...] (P16C).

P – [...] Porque ela tava, assim, interessada em um aluno na sala, quer dizer mais o aluno nela, que ela chegou agora e... é bonitinha. Então eu percebi alguma coisa e fiquei preocupada, porque ela tava, assim, sentando perto, pegando muito na mão dele, né? E ele tava meio... então, eu comecei a separar porque eu percebi que o negócio tava ficando meio assim... Não, nada assim, mas como ela tem namorado, né? Eu falei deixa eu... (risos). [...] ...eu até tava achando bonito o relacionamento dos dois, mas aí o que me preocupou foi quando eu fiquei sabendo que ela tinha um outro namorado. Então não tá certo. Por mais que seja uma... olha daqui, olha dali, só, mas não tá certo. Ela tem que entender que se ela tem um namorado, ela tem um namorado (P8C).

Comportamento de rir maliciosamente

P – Olha, eu já tive observando ele, por exemplo, ele é um aluno inrriquieto... Então eu... eu percebo, assim, que quando alguém fala alguma coisa, assim, ele já dá risada, aquele sorriso que você percebeu que ele entendeu, que ele já tem a malícia para tal. Já percebe que ele tem a ma- lícia (P18C).

Comportamento de dançar

P -– ela é... tem inclusive, assim, se ela vê algum menino, alguma coisa, ela... ela gosta de,
sabe? tipo aparecer, assim. Como ela já é formadinha, assim, tem seio, tudo, ela adora dançar, ficar exibida com o corpo. Então, parece que ela já chama atenção disso daí, dá impressão de que ela já tem pouco. [...] Só ela, só ela, nessa parte aí de dança, mesmo. Ela gosta de exibir o corpinho, ela gosta que mexe a bundinha... [...] (P5C).

Comportamento de masturbação (uma única ocorrência)

P – [...] às vezes ele fica assim... é... coloca a mãozinha por dentro da calça e fica... mexendo. É, mexendo, assim, sabe? Tem hora, às vezes, até é... numa atividade que tá todo mundo disperso, um pra lá outro pra cá, ele ... não tá, assim, preocupado (risos). Ele tá preocupado em colocar a mão e fica o tempo que ele quer. [...] Eu pergunto, assim, às vezes, ‘se ele quer ir no banheiro’, ‘se ele tá com vontade de fazer xixi’. Às vezes ele sai, às vezes não. Mas e... às vezes ele pára e de repente começa de novo (risos). [...] Já até perguntaram: “Aí, olha, o fulano tá com a mão ali”. E eu falei: “Não, ele vai no banheiro fazer xixi e já já ele volta”. Então eles acabam achando que é normal (risos). As crianças, né? Até pra num... de repente num ficar sem resposta pra criança, né? que tá perguntando porque é que ele tá com a mão, na... no órgão genital, né? (P6C).

O interesse por outra pessoa entre os alunos com deficiência foi descrito pelos professores desse grupo como sendo heterossexual, expresso por meio de comportamentos como agarrar, abraçar e beijar os colegas. Esse desejo de namorar significa, para alguns professores, apenas uma manifestação própria do de- senvolvimento e da idade (P7C, P13C, P15C), enquanto, para outros, um problema: “assanhamento” (P12C), “despertar muito” (P16C) e “incorreto” (P8C). Na maioria das vezes, os comportamentos afetivos relatados não atrapalham as atividades acadêmicas, não são públicos, aberrantes nem grotescos e, por vezes, são considerados, pelos professores, como ingênuos e infantilizados, não-problemáticos.
Os outros comportamentos relatados, como a masturbação, rir maliciosamente e dançar, enquadram-se na mesma análise. São comportamentos próprios da idade, que revelam um interesse natural pelas questões sexuais, sejam elas verbalizadas ou corporais, que não se caracterizam como um problema para alguns professores e, em outros casos, é considerado um comportamento exibicionista e inadequado.

A professora P8C, ensino comum, relata uma questão interessante. Sua aluna com deficiência é
tranqüila e acomodada, inclusive porque tem um namorado fora da escola. O relato da professora sobre o fato de a aluna namorar um rapaz fora da escola e, ao mesmo tempo, interessar-se por um colega da sala evidenciou sua preocupação em relação ao ocorrido, não pela manifestação de troca de carícias e interesse mútuo entre os dois na sua sala de aula, mas pelo fato de a menina estar cometendo uma traição, o que, para ela, “não é certo”. Esse comportamento da professora deixa evidente a generalização de seus valores sobre relacionamento, fidelidade etc. e, mais ainda, uma projeção de questões relacionadas à vida adulta que dificilmente podem ser atribuídas aos namoros próprios da infância e da puberdade. Ela não só julgou o ocorrido como se preocupou em intervir, separando os dois alunos nas atividades da sala.

Acreditamos que os professores do ensino comum desvelam, na verdade, posturas pessoais quando jul- gam os comportamentos que perceberam em seus alunos, deficientes ou não. O incômodo diante dos comportamentos sexuais observados parece decorrer muito mais de uma inabilidade e de um desconforto pessoal diante das questões da sexualidade do que dos possíveis problemas que essas manifestações podem, de fato, causar no processo de ensino-aprendizagem, no ambiente da escola. De todos os professores desse grupo, P6C foi a única professora que comentou sobre o comportamento de masturbação na sala de aula, que comumente é entendido como um problema, embora, nem nesse caso, o relato referiu-se a uma situação que pudesse ser considerada gritante.

No grupo do ensino especial, quase todas as professoras relatam que seus alunos expressam sua sexualidade por meio de comportamentos ou eventos, especialmente na expressão da afetividade. Apresentaremos alguns exemplos de relatos das professoras em diferentes sub-agrupamentos.
a) Comportamentos afetivos: toques e aproxima- ções, dançar, ficar junto, beijar, paquerar, namorar, trocar bilhetes e cartinhas:

P – [...] Tem até uma menina que compra aliança e dá pra um menino, daí aquele menino não aceita e ela dá pro outro, qualquer um serve, né? (risos) Então, a gente percebe que é uma coisa, assim, que ela tá muito ansiosa pra acontecer, mas ela não sabe nem com quem nem como acontecer. [...] a gente percebe que todos eles tão, assim, querendo namorar... “preciso arranjar uma namorada” [...] Então, é assim que eu percebo mais a parte sexual, assim, deles. [...] (P7E).

P – Mas eu tenho... uma aluna que namora um aluno aqui da [Escola Especial], até a família... aceita numa boa... Mas aí, também, é aquele namoro de dar a mão, beijinho, só, entendeu? Não tem nada, assim, de exagero. Eles não têm, assim, aquele palavreado, assim, ‘tesão’ , né? Sabe? assim? Aquela malícia? [...] Tem outra aluna que pede pra gente escrever cartinha. [...] se eles querem escrever uma carta de amor,... ela tem as palavras, mas ela não sabe colocar no papel, então ela pede. Aí eu não escrevo... Mas aí ela sempre arruma um outro que tem outras salas e outros alunos que escrevem bem, né? Aí a pessoa escreve e ela dá pra mim ler (risos) pra ver se tá certo. E nunca tem nada exagerado. É assim: “Eu te amo”; “eu te quero muito”, “quero casar com você”, “quero morar com você”, mas nada, assim, além disso. [...] (P10E).

b) Comportamentos relacionados à genitália: masturbação e relações sexuais heterossexuais e homosse- xuais:

P – [...] já tivemos problemas sérios... de pegar, assim, menina e menino dentro do banheiro, sabe?... quase assim tendo relação mesmo e... [...] Porque... já tive lance assim de pegar dois alunos meus, lá na escola velha, atrás, fazendo sexo mesmo, assim, sabe? de ter que chamar pai, e... daí você tem que abordar de todos os lados, eu abordei doença sexualmente transmissível... [...] ...eles não gostam de bicha... Eu coloquei que quem realmente faz isso é bicha, é mulherzinha, é homem que não gosta de ser homem. E eu ainda falo assim: “Eu acho que aqui eu só tenho homem... eu não tenho ninguém, alguém aqui quer ser mulher...?” “Não.” Então, por quê? Não... e... então eu tento abordar desse jeito. Porque na turma quem me dá mais problema são os mais velhos, né? assim, os mocinhos, né? (P2E).

P – É... dentro da escola o que a gente tinha muito problema era a masturbação, que as professoras reclamavam muito, “Êêê, porque o fulano não tira mão de dentro da calça”, né? E... eu acho que a... a masturbação era o mais, o mais relevante na escola, né? Dentro da escola. [...] o que a gente sempre aconselhou a fazer, fosse pra mãe ou fosse pra... (risos) “Criança ocupada, não faria, né?” Distrair a atenção, pa pa pa, sem recriminar como se fosse um ato pecaminoso... e sem chamar a atenção pro fato: “Vamos lá!, vamos fazer alguma coisa”, né? A orientação sempre foi: “criança ocupada não fazia isso”, né? Quer dizer, sempre que acontecia esse fato, essa criança tava num canto, sem fazer nenhuma atividade, né? (P5E).

c) Comportamento de agarrar e assediar outras pessoas indevidamente:

P – Daí, ele... foi e agarrou a lavadeira... foi... mas grudou nos seios dela, jogou ela na parede, assim, de pinto duro mesmo e fez, assim, pra avançar mesmo em cima dela. Foi o único, assim, problema que ele teve... sabe, assim, de... nesse sentido, assim, de desejo, de ir pra cima de alguém. [...] Ela apavorou, porque ele é grande, assim, ele é forte, né? Ela começou a gritar...!!(P2E).

P – [...] tem esse caso desse menino que eu acho que... que ele... ele tem umas... umas coisas, assim, que eu... eu, tipo, ele fica muito junto com menino, ele abraça menino. O ano passado, a gente tava numa sala que... eles tavam junto com os normais, com os ouvintes. E esse aluno era meu. E... os alunos que faziam parte desta sala, eles eram menores. E ele ficava muito abraçando. E eu falava: “J., porque que você ta abraçando?” Mas ele ficava ali, muito pegando no menino, né, umas coisas, assim, que... que eu vi que não era normal, que era meio, sabe, aquela carinha, assim, de safado, meio querendo tirar proveito das coisas. E não é só ele. Tem um outro, também, que pega muito, assim, os pequenininhos no colo, sabe, aquela coisa, assim de ficar... até com a gente mesmo ele faz isso, meu aluno faz. Ele vem abraçar, ele fica encostando no seio da gente, fica apertando, sabe, assim, pra sentir, de querer pegar, de querer ficar muito beijando, né, que num... num é normal, assim, né. Os outros não agem dessa forma. [...] (P1CE).

d) Comportamento exibicionista:

P -– “Olha, S.! Ele tá com o pinto duro!”. Eu falo, assim: “Gente!, eu sei, até o animal fica com o pinto duro. [...] Então... eles vêem, assim, que comigo eles não... têm o tabu [...] ...quando ele veio pra mim... já não era nem mais assim, sexual de sexualidade, é... era uma manha. Quando ele era contrariado ele arrancava a roupa inteira, certo? E ele já é mocinho, ele já fez 13... Ele já tinha pêlos, ele já tinha o órgão, assim, quase que formado, e... era constrangedor pra todo mundo, né?... teve uma vez que aconteceu isso, que eu contrariei ele que ele queria sair e eu não deixei. Daí nós colocamos ele dentro da sala e eu falei: ...”Você vai cumprir as regras da oficina e você não vai sair agora”. Ele arrancou a roupa inteira... e falei:

“Você pode arrancar... fique pelado...” Ainda virei e falei: “Tô cansada de ver pinto de homem, não ligo, pode arrancar tudo... faz o que você quiser, só que você não vai sair daqui”. Ele arrancou tudo, ficou pelado e ele é cheio de pêlos... sabe? parece um... macaco, o jeito dele. Daqui a pouco ele ficou quieto, sentou. Quer dizer, o que que acontece? Ele sabe que com aquele jeito dele de arrancar a roupa ele chama a atenção de todo mundo e a minha atenção ele não chamou... porque eu tranquei a porta, voltei a fazer o que eu tava fazendo e ele dava murro... pelado... e ele viu que eu nem liguei pra ele. Ele nunca mais arrancou a roupa, foi uma vez... [...] (P2E).

e) Ocorrência de abuso sexual:

P – E... não digo que fosse uma coisa, assim, absurda, mas... me parece que houve qualquer coisa,... me parece que foi de um padrasto, que teve qualquer coisa. Eu ouvi comentários de outras professoras porque eu só peguei ela esse ano, né? [...] Então, uma coisa, assim, meio... não muito bem informada. Mas deu pra pegar alguma coisa que deve ter sido algum abuso, alguma coisa então, não sei te dizer ao certo, mas deve ter sido alguma coisa, assim, meio... triste, né? Porque a menina ela... é a gente percebe, assim, que tem hora que ela fica meio chateadinha, assim, com as coisas, ela é... ela é diferente. Ela é uma menina diferente, cê percebe que houve qualquer coisa no passado, uma queimadura também no braço, eu não sei o que foi, uma queimadura feia também que ela tem, sabe? pelo corpo, braço... uma coisa, assim, tão... em decorrência de que, não sei. Não tive acesso ao prontuário dela, não posso falar (P1E).

f) Ocorrência de doenças sexualmente transmissíveis:

P – [...] ...o C. já teve problema, porque ele foi pra casa dos pais e ele chegou assim, com uma infecçãozinha, uma coisa, assim, a gente até ficou pensativo, né? se não era uma coisa assim, por exemplo, podia ser até uma doença venéria que ele trouxe da casa dos pais, né? não foi aqui... Ele ficou, assim, ficou, assim, com... tratamento tudo, o C., né? Porque ele foi, justamente porque ele foi pra casa dos pais e na casa dos pais, né? casa de mãe, né? Como é que a pessoa vai ficar lá junto pra saber o que tá fazendo, né? Ele ficou afastado da escola um bom tempo, né? E agora já tá curado, graças a Deus. (P1E).

Em relação ao namoro, algumas professoras desse grupo (P1E, P7E, P9E, P4CE) comentam que seus alunos com deficiência não sabem administrar os sentimentos relacionados ao enamoramento e ao amor, como o ciúme, a posse, a conquista etc. É comum as professoras referirem-se a uma certa inadequação das pessoas com deficiência em relação ao comportamento de namorar, isto é, o desenvolvimento de pensamentos fantasiosos, sentimentos de frustração e ansiedade. Embora tais sentimentos sejam comuns aos jovens não-deficientes da mesma idade, várias professoras os interpretam como um problema a mais, com o qual elas também não sabem lidar. Outras professoras, entretanto, P7E e P1CE, percebem que os conflitos e o desejo de namorar são iguais aos de qualquer pessoa não-deficiente.

Algumas professoras do ensino especial, por diferentes razões, procuram inibir o namoro entre os alunos, no contexto escolar. P2E alega que outras crianças poderiam ver e não o entenderiam, ou jovens poderiam ficar excitados. P5E, por exemplo, teme que a aluna possa comentar isso com a mãe. Em nenhum dos dois casos, a preocupação das professoras inclui a necessidade de garantir o compromisso acadêmico exigido pela função que exercem na escola. Em outras situações, ao inibir ou vigiar as relações de namoro dos alunos, as professoras revelam uma preocupação maior em prevenir a ocorrência de relações de maior intimidade: “antes que fique mais forte” (P14E); “antes que passe da conta” (P1CE) e “por enquanto não fez nada de mais” (P3CE). O controle e a vigília, no entanto, não levariam ao esclarecimento, nem permitiriam uma discussão sobre o assunto com os alunos.

Não há evidências de que as relações sexuais citadas sejam manifestações eróticas entre casais, as quais ocorrem publicamente na instituição. A nosso ver, trata-se mais de jogos sexuais que são comuns na fase de desenvolvimento psicossexual em que se encontram as crianças e de jovens deficientes, especialmente quando há restrições à convivência fora da instituição. Outras manifestações entretanto, embora ocorram em menor freqüência, chamam mais a atenção dos professores e exigem deles maior controle e repressão. É o caso do comportamento de assediar indevidamente outras pessoas. É possível perceber que, diante desses fatos, é comum as professoras mostrarem uma grande preocupação em controlar (repreender, conversar, vigiar), mas não em observar as razões que levaram os alunos a manifestarem tais comportamentos. Em geral, elas os tomam como anormais e impróprios, mas não questionam as condições do ambiente na escola que podem contribuir para o ocorrência desses comportamentos.

Destacamos a professora P2E, ensino especial, porque ela relata a ocorrência de várias manifestações sexuais dos alunos: perguntas, masturbação, exibicionismo, assédio etc. Ela retrata, de forma clara, como a escassez de informações precisas sobre como lidar com a sexualidade pode levar a atitudes de natureza subjetiva e equivocada, ainda que bem intencionadas. Diante da suposta ocorrência de relações sexuais entre seus alunos (embora, dependendo do contexto, poderíamos supor que se trata de jogos sexuais), ela tenta controlá-la, apelando para a ameaça de “doenças sexualmente transmissíveis” e da “homossexualidade”. Ela se mostra disposta a falar com os alunos sobre vários assuntos referentes à sexualidade, parece ter boa comunicação e interação com os alunos, mas, para orientá-los, utiliza-se de seus próprios valores morais. Por exemplo, para prevenir um suposto abuso sexual entre os seus alunos, em decorrência de uma brincadeira sexual, ela diz que esse comportamento é próprio de “homossexuais” e não de “homens”, alimentando crenças errôneas e preconceitos sobre a homossexualidade. Tentando ensinar um comportamento adequado, acaba por reforçar outro inadequado, como o preconceito e a discriminação em relação à homossexualidade.

Essa professora não é uma exceção. O que ocorre freqüentemente no cotidiano escolar é que o professor considera sua formação deficitária ou simplesmente inexistente sobre o tema da sexualidade, atua em rela- ção às manifestações sexuais dos alunos segundo seus próprios valores. Eventualmente, a própria instituição é repressora, o que, em alguma medida, facilita a vida do professor já que ele não precisa sê-lo e encontra respaldo institucional para agir como repressor. Já quando a escola é omissa ou procura ser liberal, o professor, sem maior orientação, norteia-se, pelo seu próprio juízo moral, e, muitas vezes, mesmo com a melhor intenção, acaba por agir de forma contraditória.

DISCUSSÃO

No ensino comum, há professores que relataram não observar manifestações sexuais de seus alunos. Compreendemos que isso ocorreu porque os professores não observam comportamentos explícitos, visíveis, que fossem considerados inadequados. Considerando que a sexualidade é inerente ao ser humano e que inevitavelmente ela vai se manifestar no ambiente da escola, levantamos algumas hipóteses para justificar por que os professores só entendem como manifestação sexual dos alunos, nas condições descritas, certas ações visíveis relacionadas ao corpo e que são consideradas incorretas:
a) o conceito de sexualidade é relacionado ao sexo genital, contrariando a noção ampla de sexualidade apresentada pelos autores Chauí (1985), Guimarães

(1995), Maia (2001b) e Nunes (1987). Os professores, quando relacionam a sexualidade à genitalidade, imaginam somente os comportamentos sexuais de seus alunos relacionados à genitália e não às outras condutas envolvidas como as relações de amizade, de afeto, as noções de identidade e papéis sexuais etc.

b) os alunos com deficiência nas escolas regulares têm deficiências de grau leve e condições favoráveis de interação social. Os professores não percebem as manifestações sexuais porque esses alunos mostram comportamentos “bem próximos do normal” em relação aos seus pares na escola, evidenciando os benefí- cios de uma socialização inclusiva, como apontaram os autores Aranha (2001), Amor Pan (2003), Buscaglia (1997), Mader (1997) e Pinel (1993);

c) os alunos com deficiência parecem ser considerados “assexuados” pelos professores e por isso parecem não ser percebidos em suas manifestações sexuais, concepção apresentada pelos autores Amaral (1994), Amor Pan (2003), Dall’Alba (1992), Gherpelli (1995), Giami e D’Allones (1984), Glat (1992), Maia (2001a), Tang e Lee (1999) e Vasconcelos (1996). Embora essa hipótese seja a menos provável, porque, em outros momentos, há evidências da percepção da sexualidade dessas pessoas, isso poderia justificar a negação ou a ocultação de comportamentos que os professores possam julgar como sexuais.

Há, entretanto, outros professores do ensino comum que percebem a manifestação da sexualidade entre os seus alunos com deficiência, em geral por meio do diálogo e de comportamentos que expressam a afetividade. Tanto os comentários e as ações relatadas são tidas como curiosidades próprias da idade (Costa, 1986; Nunes & Silva, 2000; Vitiello, 1997). Ou seja, as manifestações relatadas não correspondem às concepções a respeito da sexualidade do deficiente como exagerada e prematura, comentadas por Amaral (1994), Amor Pan (2003), Dall’Alba (1992), Giami e D’Allones (1984) e Glat (1992).

O assunto predominante entre os alunos é sobre o namoro e os professores que dialogam com os alunos priorizam os aspectos biológicos e o controle sobre a sexualidade, incluindo: higiene, menstruação, preservativo e doenças sexualmente transmissíveis. Tal modo de lidar com o tema reproduz uma visão restrita de sexualidade que enfatiza as questões biológicas em detrimento das psicossociais (Guimarães, 1995; Sayão, 1997).

No ensino especial, todas as professoras observam manifestações de sexualidade (ações e falas) dos alu- nos, especialmente no caso de alunos com deficiência mental. Nesse ambiente as ocorrências foram observadas com maior freqüência do que no ensino comum. Entendemos, neste fenômeno, que:

a) há, evidentemente, um maior contingente de alunos com deficiência no ensino especial, o que está diretamente relacionado com a maior freqüência de comportamentos observados;

b) as interações sociais dos deficientes no ensino especial são mais restritivas e vigiadas. O controle, aliado às restrições e à possibilidade de interação social, aumenta os flagrantes das manifestações sexuais que, em condições de menor controle, passariam des- percebidas (Gherpelli, 1995; Glat, 1992; Pinel, 1993; V asconcelos, 1996);

c) os alunos que freqüentam o ensino especial são aqueles que têm deficiências com maior grau de comprometimento. Isso demandaria ações especializadas, voltadas para o ensino de repertórios comportamentais e sociais adequados. Como afirmam os autores Assumpção Júnior e Sprovieri (1987), o consentimento para condutas sexuais, relações interpessoais e convivência afetiva com parceiros estará relacionado, em grande parte, ao grau da deficiência e à qualidade das relações sociais em que o sujeito se insere. Daí que no caso de alunos com maior comprometimento mental, por exemplo, a dificuldade em abstração das regras sociais pode levar à apresentação de comportamentos tidos socialmente como inadequados e, portanto, mais percebidos pela comunidade escolar.

Os comportamentos observados foram, na maioria, referentes a situações do desejo de namorar, expresso por meio de comentários, bilhetes, toques e pelo namoro efetivamente. A maioria das professoras relatou que o namoro de seus alunos é normal, infantilizado e não-problemático. Todavia, talvez porque seus alunos sejam prioritariamente jovens com deficiência mental (púberes, com o corpo físico desenvolvido), elas relatam tentar manter o controle e a vigilância sobre esses comportamentos, partindo do pressuposto de que o aluno “pode ir além”, o que entendemos querer dizer que a liberdade pode levar à ocorrência de relações sexuais. Além disso, o namoro também parece ser um problema, para as professoras, quando elas observam dificuldades dos alunos para lidar com sentimentos de posse, ciúme, rejeição, conquista, prazer etc. próprios do enamoramento e do amor.

É preciso ressaltar que o desejo de namorar, a masturbação e os jogos sexuais relatados pelas profes- soras do ensino especial são, de fato, comportamentos próprios da idade em que os alunos se encontram, em que é comum o conhecimento corporal, a expressão da afetividade e a exploração de diferentes sensações e prazeres (Costa, 1986; Nunes & Silva, 2000; Vitiello, 1997).

Muitas professoras contam situações de namoro e de casamento que realmente aconteceram entre as pessoas com diferentes deficiências, ora como um problema ora como uma experiência bem-sucedida, o 
que, segundo Behi e Behi (1987), Buscaglia (1997), Gherpelli (1995), Glat (1992) e Koller, Richardson & Katz (1988) é bastante possível.

Não se observou, como regra, a manifestação de comportamentos sexuais grotescos ou aberrantes. Os comportamentos efetivamente problemáticos foram a minoria e decorreram, segundo a análise dos relatos das professoras, de inadequações do ambiente e não de uma característica patológica do aluno.
Um fato interessante é que a masturbação citada pelas professoras está relacionada à ociosidade, isto é, à falta de situações concorrentes mais reforçadoras; em geral, alega-se que ela ocorre, freqüentemente, na instituição, porém poucas vezes foi observada diretamente pelas professoras. Também neste caso, as professoras não se questionam sobre seu papel na educação necessária para expressão adequada desse comportamento.

Ainda no ensino especial há, embora em poucos relatos, a ocorrência de assédio inadequado, abuso sexual, doenças sexualmente transmissíveis, relações sexuais e jogos sexuais. Todos os casos citados são relatos de professoras da Escola Especial D. Essa escola funciona em um regime de internato que contribui para uma menor socialização e uma maior repressão dos alunos. Tanto nesta instituição quanto no ambiente do ensino especial em classes especiais parece que há contingências de segregação que diminuem a socialização e aumentam os comportamentos considerados inadequados (Edwards, 1995; Gherpelli, 1995; Pinel, 1993; Vasconcelos, 1996).

Outra observação das professoras é a ocorrência de discriminação e preconceito nas relações entre os alunos, corroborando os dados de Dall’Alba (1992) e Glat (1992). A professora P10E exemplifica isso em relação à escolha de parceiro(a) amoroso(a), quando um aluno deficiente menospreza o outro deficiente como um amante em potencial, discriminando-o pela sua deficiência.

A literatura tem apontado que muitos dos comportamentos que poderiam ser chamados de normais para a idade são considerados impróprios, quando observados em deficientes mentais (Assumpção Júnior & Sprovieri, 1987; Pinel, 1993; Tang & Lee, 1999). A justificativa mais comuns das professoras do ensino especial para muitos dos comportamentos sexuais dos alunos é a falta de controle sobre os instintos e sobre o desejo sexual que essas pessoas teriam; elas não se perguntam qual seria a responsabilidade do professor e da escola para ensinar comportamentos adequados, desprezando a importância do ambiente em que essas manifestações ocorrem.

Nos dois grupos de professores, é evidente a carência de informação e preparo dos professores para receber e orientar seus alunos com deficiência sobre o tema, especialmente devido a uma formação deficitária em relação à sexualidade, o que é comum observar, segundo Nunes (1987), Ribeiro (1990) e Nunes e Silva (2000). No caso dos professores do ensino comum essa formação deficitária se estenderia ao desconhecimento da educação especial e ao processo de ensino-aprendizagem da pessoa com deficiência.

Também é possível dizer que, quando há atitudes e diálogos relacionados com as manifestações sexuais dos alunos, essas se baseiam no senso comum. Quando os professores lidam com os comportamentos que observam, em geral, julgam e opinam sobre eles, tendo como base seus próprios valores e generalizando- os para todos os alunos quando os orientam. Entendemos que essa postura é uma forma de repressão sexual (Chauí, 1985; Ribeiro, 1990; Nunes, 1987), pois reforça dogmas e ideologias existentes e não leva os alunos a desenvolver uma autonomia em relação à questão.

Fica evidente, portanto, que é impossível considerar as pessoas com deficiência como assexuadas e que o ambiente da escola é neutro em relação a este assunto (Dall’Alba, 1992). Também, que as manifestações sexuais que os professores observam nos alunos com deficiência, tanto no ensino comum quanto no especial, são manifestações próprias às idades dos alunos e, em nenhum caso, aberrações patológicas. Além disso, parece claro que há muitas ações de alunos e de professores em relação à sexualidade, mesmo que esse tema não seja encarado de forma sistemática na escola. Ao contrário, ele é tratado cotidianamente, embora as iniciativas mais comuns envolvam repressão e orientação individual, baseadas em diferentes valores sobre o assunto, de maneira doméstica e improvisada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em ambos os grupos, os relatos dos professores, em geral, enfatizaram uma noção genitalizada de se- xualidade e quando se verifica a preocupação em dia- logar sobre ela, prevalecem os aspectos biológicos, com tendência moralista. Além disso, os comentários e os comportamentos dos alunos, conforme relatado pelos professores, envolveram basicamente as expressões de afetividade, próprias da idade em que os alunos se encontram, sem evidências de aberrações e atipias. Nos poucos casos de comportamentos, efetivamente, considerados inadequados porque desrespeitosos e agressivos, esses ocorreram em resposta ao ambiente e não se configuraram como manifestações relacionadas à deficiência em si.

As manifestações sexuais relatadas por todos os professores fazem parte do desenvolvimento psicos- sexual de crianças e adolescentes, principalmente num ambiente de socialização, como é a escola, independentemente da deficiência. Essa manifestação é compreendida pelos professores como problemáticas, ou não. Em ambos os casos, os valores pessoais sobressaem no julgamento dessas manifestações, pois a concepção e a atitude do professor estão diretamente relacionadas com os valores que ele desenvolveu em sua história de vida cotidiana e não em um processo sistemático de formação acadêmica.
A inclusão escolar, com os benefícios de uma socia- lização adequada, pode favorecer o desenvolvimento nos alunos de comportamentos sexuais adequados, mas para isso, é preciso investir na formação dos pro- fessores, de forma que estes tenham o conhecimento e a competência para lidar com a educação sexual de seus alunos.

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Enviado: 30/01/2005 Revisado: 30/06/2005 Aceito: 14/07/2005
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Nota:
1 Esse artigo é parte integrante da tese de doutorado da primeira autora, sob orientação da segunda autora.
Agradecemos aos professores Dr. Sadao Omote, Dr. Júlio Romero, Dr. Paulo Rennés Marçal Ribeiro, Dra. Enicéia Gonçalves Mendes e Dra. Olga Maria P. R. Rodrigues pelas importantes contribuições na avaliação deste estudo.
Sobre as autoras:
Ana Cláudia Bortolozzi Maia: Formada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru/SP; Mestre em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos/SP; Doutora em Educação pela UNESP, Marília/SP; atualmente é docente do Curso de Graduação em Psicologia lotada junto ao Departamento de Psicologia da UNESP, Bauru/SP.
Área de pesquisa/interesse: Educação Especial; Educação; Sexualidade Humana. Endereço para correspondência: Rua: Mário Fundagem Nogueira, 1-43 – Jardim América, CEP: 17017-324 – Bauru/SP – Fone: (0xx14) 3103 6087; FAX: (0xx14) 3234 2917. Endereço ele- trônico: aclaudia@fc.unesp.br.
Maria Salete Fábio Aranha: Formada em Psicologia pela Fundação Educacional de Bauru (atual UNESP), Bauru/SP, Mestre em Rehabilitation Counseling pela Southern Illinois University, Carbondale, Illinois (USA), Doutora em Psicologia Experimental pela USP/SP, Pós-Doutorado em Formação Continuada de Educadores, pela Southern Illinois University, Carbondale, Illinois (USA); do- cente aposentada do Departamento de Psicologia da UNESP-Bauru (SP), Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP-Marília/SP. Área de pesquisa/interesse: Educação Especial, Educação Inclusiva, Reabilitação Profissional de Pessoas com Defi- ciência.
Interação em Psicologia, jan./jun. 2005, (9)1, p. 103-116