domingo, 28 de junho de 2015

ORGANIZAÇÃO ESCOLAR, CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Compartilho o excelente texto de Rosana Bignami sobre a inclusão no ambiente escolar (ou a falta desta)

ORGANIZAÇÃO ESCOLAR, CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Texto disponível no grupo: Conversa na Escola

Profª Drª Rosana Bignami

rosanabignami@gmail.com

 

Um dos problemas apontados por grande maioria de pais, entre os quais me incluo, com relação à inclusão na escola, está na organização escolar e sua pouca adaptabilidade às necessidades da inclusão.

Em uma reunião feita com a escola (municipal, mas isso tem acontecido na grande maioria das escolas) a coordenação destacou a dificuldade que tem em mudar a organização da escola para atender as necessidades especiais de uma aluna com síndrome de Down, minha filha de 9 anos. No caso, a organização conta com: 1 sala de aula, salas de especialidades (informática, inglês e artes), 1 sala de leitura (horários fixos), 1 professora titular da sala (com horários alternados com as demais disciplinas), 1 estagiária em formação (com contrato por prazo determinado), 1 auxiliar da vida escolar, além dos demais profissionais. A organização requer que cada aluno saia de sua sala e se mova para a outra sala, de acordo com a matéria. A organização também está centralizada nos horários dos profissionais, sendo que, por exemplo, o horário da estagiária é das 7 às 11 e o horário da escola é das 7 às 12, o horário da professora titular não contempla todo o período, mas somente os períodos em que não há aula de especialidade (inglês ou artes, por exemplo).

Informei que, para que ocorra a identificação e confiança/vínculo de uma criança com deficiência intelectual com o profissional da educação, seja ele quem for, bem como para que o resultado da aprendizagem seja efetivado, é necessário criar certas rotinas e manter a prestação do serviço, sobretudo quanto à professora titular e à professora auxiliar (no caso é a estagiária quem exerce essa função).

A coordenação explicou que é difícil (querendo dizer que é inviável) manter a regularidade e informou que os profissionais de educação também têm suas vidas pessoais (podem estar ausentes, por exemplo, em função de licença médica, de faltas, por encerramento do contrato de trabalho, etc.) e argumentou que as crianças têm que se adaptar e que isto é um benefício para elas, ou seja, assim a criança não cria vínculo somente com uma pessoa e qualquer pessoa na escola pode 'cuidar' da criança deficiente.

Essa condição imposta pela escola leva a considerar duas grandes lacunas no modelo educacional atual, de forma geral: (i) a escola acredita que criança com deficiência intelectual não tem obrigação de acompanhar o grupo, pois não irá ter aproveitamento mesmo, então, na falta do professor, pode ficar com qualquer um na escola (aconteceu, por exemplo, de eu chegar para ir buscar minha filha e ela estava na sala de leitura vendo figurinhas ou no corredor olhando para o céu); (ii) a escola acredita que não é responsável pela prestação do serviço de forma excelente (o professor pode faltar, pode ficar de licença, pode ter reunião e não ter aula, a estagiária ainda está aprendendo e, então, pode errar com a criança, a funcionária não tem experiência, mas, como é uma criança deficiente, tudo bem, serve assim mesmo, a criança pode se negar a participar e ficar sem aula mesmo, etc.). Além disso, diante de alguma dificuldade, a escola normalmente atribui a raiz do problema a agentes externos: o problema está na secretaria da educação que enviou um funcionário sem formação adequada, o problema está nas leis que não prevêem um professor auxiliar, o problema está no sistema educacional em si (?) que coloca no mercado profissionais da educação sem nenhum conhecimento de inclusão ou de deficiências, o problema está nas famílias (há algum problema familiar, a família não educa, a família não participa, etc.), etc.

No entanto, se observarmos as dificuldades em si, veremos que a questão está centralizada em dois grandes eixos: o da organização escolar e o da capacitação dos profissionais da educação. As concepções apontadas estão vinculadas a processos de gestão e de organização, bem como a carências de profissionais adequados no sistema de ensino, que nada têm a ver com o processo de ensino-aprendizagem em si, mas que o afetam na medida em que definem os seus limites. Assim, uma vez que o horário da professora não é integral, mas limita-se aos seus momentos em sala de aula específica (e às demais incumbências da profissão e da organização escolar), quando ela não está, há uma lacuna, ou seja, em termos de serviço, há um "desserviço". 

Da mesma forma, se o "sistema" não prevê uma professora auxiliar, o aluno com deficiência é quem tem que correr atrás do conteúdo, uma vez que a professora titular não tem tempo ou não tem a incumbência de adaptar o material, muitos menos de se sentar ao seu lado e aguardar o seu ritmo, uma vez que há toda uma classe à sua espera. 

O aluno com deficiência intelectual, especificamente, pode apresentar maiores ou menores dificuldades para 'correr atrás do grupo e do conteúdo', não havendo, de forma alguma, um padrão de resposta. Assim, pode ser que um aluno consiga, por si só, acompanhar o grupo, observar e copiar comportamentos, ouvir com atenção, aprender determinadas atividades sozinho; por outro lado, pode ser que um aluno necessite de supervisão orientada durante a maior parte do tempo em que ele está na escola (alguém que o estimule a olhar para a professora e a prestar atenção, alguém que o estimule a pegar o seu material e a realizar alguma atividade com ou sem auxílio, alguém que o ajude a se levantar e a acompanhar o grupo, alguém que o lembre de que a aula de artes acabou e que deve levantar e ir para outra aula e o espere até que seu ritmo individual o faça se mover e isso não atrapalhe o ritmo dos demais alunos).

Por isso, para que a inclusão ocorra, de fato, os horários dos profissionais, as suas funções, os tipos de contrato que mantêm com a escola, os sistemas de controle de horários, as qualificações e competências, enfim, questões que dizem respeito ao organograma das escolas e à capacitação dos profissionais, é que devem ser definidos para atender às necessidades de TODOS os alunos. A divisão de tarefas, a estratificação em funções, a organização em setores, tudo deve ser feito para que o processo de ensino-aprendizagem na educação inclusiva ocorra de forma excelente. Obviamente que, nessa organização, alguns elementos têm maior participação e importância no processo, ou seja, o setor pedagógico, formado por corpo docente, coordenadores, orientadores e demais profissionais que exercem funções pedagógicas. Os profissionais que têm contato direto com os alunos têm a responsabilidade de manter a prestação do serviço educacional e de prestar a assistência pedagógica e didática a TODOS os alunos. Limites organizacionais ou limites de capacitação não podem, nem devem ser impeditivos do processo de ensino-aprendizagem de alunos com deficiência intelectual ou qualquer outra deficiência. 

O que se observa, no entanto, é que os modelos educacionais conseguiram caminhar, de certa forma, para assegurar o processo de inclusão de alunos com deficiência, adequando ou procurando recursos materiais ou tecnológicos, uma vez que parece ser mais simples adequar mobiliário e livros do que capacitar pessoas. É óbvio que, com isso, não se quer mostrar que a inclusão de alunos com deficiências não requer que se coloquem à disposição novos materiais, novos ambientes e novas tecnologias, mas sim apontar para o fato de que a inclusão de alunos com deficiência intelectual requer muito mais do que mudanças em recursos físicos (material adaptado impresso em primeiro lugar): é necessário investir em capital humano e em capital social. É necessário entender, definitivamente, que o maior e mais importante elemento do processo de inclusão e de todo e qualquer processo de ensino-aprendizagem, é o elemento humano. É preciso dotar os profissionais da educação dos recursos internos (conhecimentos, valores, crenças, atitudes) para que possam efetivamente promover o processo de inclusão. De nada serve um livro com conteúdo adaptado se o professional não sabe como usá-lo. 

Para a educação inclusiva, portanto, é necessário que ocorra uma preparação adequada. É necessário ter, por exemplo, uma atitude positiva diante da deficiência. Pessoas que não a compreendem ou que têm um olhar pouco atento à diversidade não são profissionais que podem trabalhar com a inclusão. Profissionais com pouca disponibilidade para aprender e para aceitar o Outro, bem como para aceitar desafios também não devem trabalhar com a educação inclusiva. É preciso também dotar todos os profissionais envolvidos (desde o corpo docente aos demais profissionais) de conhecimento especializado ou é necessário dotar as escolas de mais profissionais: psicopedagogos durante todo o período, psicólogos e terapeutas durante todo o período, fonoaudiólogos durante todo o período, etc. Destaca-se que essa oferta deve ocorrer durante TODO O PERÍODO, pois é impensável ofertar educação inclusiva somente em determinados horários (isso já é em si uma exclusão). Essa oferta educacional deve ocorrer de forma excelente, sistemática, sustentável e para todos, durante todo o período de estudos.

Ou seja, para que ocorra a educação inclusiva, o maior desafio consiste em dotar as escolas de novos paradigmas: a organização deve se adequar aos alunos e não o contrário; os profissionais da educação devem internalizar os conhecimentos e recursos atitudinais necessários para que possam lidar de forma positiva com a diversidade, com a inclusão e para que possam, efetivamente, contribuir para o processo de ensino-aprendizagem que não se limita, de forma alguma, à transmissão de conteúdos adaptados. 

Enfim, é necessário que, urgentemente, se crie nas escolas o espaço para que sejam contratados profissionais deficientes que possam ser eles mesmos modelos para o ambiente educacional. "Os alunos com necessidades especiais precisam de oportunidades de interagir com adultos com deficiência que obtiveram sucesso, de modo a que possam modelar o seu próprio estilo de vida e as suas aspirações por expectativas realistas". (documento da UNESCO)

 



Referências: 

 

DECLARAÇÃO DE SALAMANCA e ENQUADRAMENTO DA AÇÃO na área das necessidades educativas especiais. UNESCO. Disponível em: 

http://www.madeira-edu.pt/LinkClick.aspx?fileticket=7fr0EPRPiY4%3D&tabid=304&mid=1656

 

O SISTEMA DE ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DA ESCOLA. José Carlos Libâneo - UNESP. disponível em: 

http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/32/3/LDB_Gest%C3%A3o.pdf

sábado, 27 de junho de 2015

O Estatuto da Pessoa com Deficiência - Polêmicas.

Fábio Adiron, do Xiita da Inclusão, posicionou-se no Yahoo Grupos contra o Estatuto e tece uma argumentação que vale a pena conhecer:

Pessoal

Algumas pessoas me questionaram o por que sou contra o Estatuto. Vou reproduzir abaixo os textos que já escrevei e/ou apoiei a esse respeito. Os que tiverem paciência de ler terão todas as respostas

Claro que existe muita gente interessada no modelo assistencial renovado com vestimenta inclusiva que permeia o texto. Especiamente aqueles que se beneficiam economicamente tutelando as pessoas com deficiência.

Além da disputa de quem vai conseguir dar nome à nova lei...vanitas vanitatis...

Abraço

Fábio Adiron


Manifesto Contra o Estatuto da Pessoa com Deficiência. (Texto do CVI Araci Nallin, que eu apoiei)
No projeto de lei que prevê a criação do Estatuto da Pessoa com Deficiência estão inseridos programas, serviços, atividades e benefícios, muitos deles ainda concebidos através de uma visão assistencialista e paternalista e por vezes até autoritária em relação às pessoas com deficiência.
Isto porque muitos ainda nos veem como objeto de caridade, como incapazes e sem direito de fazer nossas próprias escolhas, tomar decisões e assumir o controle de nossas vidas.
Este projeto de lei, resultado de consultas públicas ao longo de alguns anos, como dizem seus defensores, altera a legislação vigente nos eixos da educação, saúde, trabalho, transportes e outros, enfim, altera as leis que hoje cunham as políticas públicas em todas as esferas de governo: federal, estadual, municipal e distrital.
Sabemos que vários interesses conflitantes permeiam cada um dos temas tratados no Estatuto. São interesses políticos, econômicos e corporativos que não representam as atuais conquistas do movimento das pessoas com deficiência.
Dizer que o Estatuto é inevitável e por isso temos que colaborar para que o seu texto seja menos ruim, é negar anos de luta do Movimento das Pessoas com Deficiência que desde 1981 - Ano Internacional das Pessoas Deficientes - começou a exigir "participação plena e igualdade de oportunidades". De lá para cá muitas ações reforçaram esta exigência. Nosso Movimento foi autor de alguns artigos da Constituição Federal de 1988 e conseguiu aprovar e barrar inúmeras leis.
O Estatuto é uma volta ao passado, quando os instrumentos legais e recomendações internacionais eram direcionados ao assistencialismo às pessoas com deficiência.
Nos tempos atuais um estatuto específico para nós é um contra-senso e um retrocesso, se coloca na contramão da evolução histórica, prejudicial ao reforçar a imagem de inválido e "coitadinho", levando a sociedade a continuar tratando a pessoa com deficiência como um ser desprovido de capacidade. Desta forma, o Estatuto legitima a incapacidade e oficializa a discriminação contra a pessoa com deficiência ao separá-la das leis comuns.
O Estatuto é desnecessário, pois a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, maior conquista da história mundial dos direitos humanos, já faz parte do nosso arcabouço legal, ratificada através do Decreto Legislativo 186/2008, com status de emenda constitucional, e reafirmada pelo Decreto 6946/2009.
Basta agora ajustar nossa legislação à ela. Já existe um estudo, encomendado pela CORDE e patrocinado pela UNESCO, que faz um paralelo entre a Convenção e a Legislação existente e aponta as alterações necessárias.
Nossa luta urgente é pela criminalização da conduta discriminatória contra as pessoas com deficiência.
Estamos caminhando para que a sociedade perceba que a pessoa com deficiência faz parte da população e é titular de todos os direitos, obrigações e liberdades fundamentais. Deverá ficar claro que, nas leis comuns, a pessoa com deficiência está incluída com o mesmo direito aos serviços oferecidos à população e que serão previstas especificidades de usufruto somente quando as condições de uma determinada deficiência assim exigir.
Em tal contexto, não haverá lugar para um Estatuto separado sobre as pessoas com deficiência. Todas as eventuais vantagens de um instrumento como este não compensam a anulação do processo de amadurecimento, evolução e conquistas do movimento das pessoas com deficiência nos últimos 30 anos, no Brasil.

Porque sou contra o Estatuto (texto meu de 2009)
"Triste não é mudar de idéias... Triste é não ter idéias para mudar!" Barão de Itararé


Ressurgiu essa semana a discussão sobre a necessidade ou não de um estatuto especial para as pessoas com deficiência. O motivo é um projeto de lei (na verdade vários projetos que foram apensados) com essa proposta. O projeto que está em discussão é um lixo. Quanto a isso há consenso geral em todo o movimento em defesa das pessoas com deficiência. Ele apenas serve aos interesses daqueles que vivem da exclusão e da segregação. Por isso, nem vou entrar no mérito do mesmo.

Acredito que a discussão de fato é, mesmo que o projeto fosse bom, seria necessário um estatuto? (seria necessário qualquer estatuto?)

Do ponto de vista legal, temos uma infinidade de leis específicas para pessoas com deficiência. Algumas boas, muitas ruins ou antiquadas. Algumas garantidoras de direitos, outras apenas concessão de privilégios. O problema não é a falta de leis, mas a falta do cumprimento delas. Temos muitas leis que nunca foram regulamentadas. Outras tantas que, apesar de regulamentadas, não são fiscalizadas. Pior, uma grande parte das leis não tem mecanismos de punição para quem as descumpre, o que as torna completamente inóquas.

No ano passado conseguimos a ratificação da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, com status de norma constitucional. Certamente é uma convenção discriminatória (lembrando que discriminar significa "fazer distinção") pois assume a existência de uma categoria diferente de seres humanos que não estariam cobertos pela declaração universal do direitos humanos. Mesmo assim foi um grande passo para uma população que, antes, não só não era considerada humana, como também não tinha acesso a direitos.

Nesse contexto a convenção passa a ser a diretriz para qualquer lei que venha a ser criada e para a revisão das leis que a contrariem.

Os defensores do estatuto entendem que existe a necessidade de se fazer uma consolidação das leis a respeito das pessoas com deficiência, e o estatuto seria o instrumento para isso. Durante um tempo eu também acreditei nisso.

Um estatuto é uma lei orgânica ou regulamento especial por que se rege um Estado, corporação, associação, companhia, etc. Ele serve para regular questões essenciais, questões referentes a comportamentos, atitudes das pessoas dentro de uma sociedade comum.Oras, se a sociedade é comum a todos, para que uma lei que proteja especialmente alguns? Ah, dirão alguns, porque são grupos historicamente discriminados, porque são cidadãos em estado de maior fragilidade.

Nesse caso não seria o suficiente aplicar a lei que serve para todos? Os direitos de todos não são válidos para as crianças, para os idosos, para qualquer cor ou etnia? Não serão bons inclusive para as pessoas com deficiência? Uma sociedade que não precise ser dividida em castas não é o nosso sonho de sociedade inclusiva?

Como o próprio Estado não cumpre as leis que tem, passa a inventar novas leis (que também não são cumpridas). Isso não passa de estratégia caça-votos (claro, se não fosse, porque então os legisladores se pegam de tapas para ter seu nome na lei?) ou estratégia diversionista - enquanto a gente fica anos discutindo a lei, ganha-se tempo para não cumprir as que existem.

Pergunta-se então: a quem serve uma sociedade que o estatuto quer edificar? Um país dividido em “castas” promoveria justiça para todos os excluídos das oportunidades econômicas, políticas, sociais e culturais? Seria a promoção da “casta” o melhor remédio contra a discriminação?

O que a sociedade precisa não é de mais leis, mas de criar e reforçar os instrumentos de controle para que as leis sejam de fato cumpridas. Isso está longe de acontecer. Numa sociedade em que cada um está preocupado só com o seu quintal não vai acontecer nunca.

Controle social dá trabalho, exige comprometimento, visão comunitária e isenta de preconceitos. Impossível numa sociedade em que todo mundo pratica alguns tipo de discriminação social.

É mais cômodo se deixar envolver pelas nuvens de fumaça.

Abaixo-assinado Pelo Arquivamento do Projeto de Lei que Institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência.(Texto do Bengala Legal que subscrevi em 2011)

Para: Congresso Nacional

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é o instrumento facilitador para o exercício e gozo dos direitos reconhecidos no sistema universal, para que elas os vivam, plenamente, e em igualdade com as demais pessoas.

A deficiência é um produto social, fruto da relação das pessoas com deficiência com seu entorno. O ambiente, assim, pode ser capacitante ou incapacitante.

No projeto de lei que prevê a criação de um Estatuto da Pessoa com Deficiência estão inseridos programas, serviços, atividades e benefícios, muitos deles ainda concebidos através de uma visão assistencialista e paternalista e por vezes até autoritária em relação às pessoas com deficiência.

Este projeto de lei, resultado de várias consultas públicas ao longo de alguns anos, como dizem seus defensores, ainda mantém em grande parte esta atitude tuteladora, vendo as pessoas com deficiência como não fossem capazes e com direito de fazer suas próprias escolhas, de tomar suas próprias decisões e de assumir o controle de suas vidas.

Retira a responsabilidade prioritária do Estado de assegurar a efetivação dos direitos humanos e fundamentais das pessoas com deficiência, quando compartilha esta responsabilidade com a família, com a comunidade e a sociedade.

Faculta ao Estado fazer convênios e parcerias com Instituições, Fundações e Organizações no que toca a saúde, educação e trabalho, não criando nenhum mecanismo de controle destas Instituições, em detrimento a qualidade dos serviços prestados.

Não avança para garantir um ensino de qualidade para todos e nem emprego digno às pessoas com deficiência, pelo contrário legaliza novamente a exploração da mão de obra deste segmento, permitindo o enriquecimento desmedido do que chamam de entidades qualificadas para intermediar.

Apesar de estar escrito que esta lei, caso aprovada, entraria em vigor decorridos 90 dias da sua publicação, ela não é auto-aplicativa, e necessita de várias normalizações para poder entrar em prática.

É oportuno relembrar que a proposta do Estatuto da Pessoa com Deficiência nasceu fora da nossa representatividade.

O nome inicial do projeto de lei – que era Estatuto do Portador de Necessidades Especiais – já é sintomático de que foi dado por pessoas que não nos representam.

Acima disto, reflete uma atitude de proteção assistida e de separação.

Ele é uma volta ao passado quando havia a necessidade de um instrumento com estas características para dar assistência à generalização da situação precária das pessoas com deficiência, mas sem abrir mão da incapacidade das pessoas com deficiência de conviver e competir com a sociedade geral.

Nos tempos atuais um estatuto específico para nós é um contra-senso e um retrocesso, se coloca na contramão da história.

O Estatuto é prejudicial no sentido de reforçar a imagem de inválido e coitadinho, levando a sociedade a continuar tratando a pessoa com deficiência como um ser desprovido de capacidade para cuidar de si.

Neste sentido, para a sociedade em geral o Estatuto da Pessoa com Deficiência se torna a comprovação desta suposta incapacidade e constitui uma espécie de oficialização da discriminação contra a pessoa com deficiência, ao separar esta pessoa das leis comuns.

Desde 1981, Ano Internacional das Pessoas Deficientes, começamos a exigir “participação plena e igualdade” de oportunidades dentro da sociedade e não fora dela.

De lá para cá muitas ações reforçaram esta exigência.

O movimento foi autor de alguns artigos da Constituição Federal de 1988 e conseguiu aprovar inúmeras leis até hoje.

A Convenção incorporada de fato à legislação brasileira, ela não apenas obrigará que as leis vigentes sejam revisadas e atualizadas, mas servirá de parâmetro para que as leis futuras venham a incluir a questão da deficiência entre seus artigos, diminuindo gradativamente a necessidade de leis específicas para as pessoas com deficiência, separadas das leis comuns.

A partir da Convenção todas as questões relativas às pessoas com deficiência deverão ser inseridas em leis comuns, que passarão a ser conhecidas como leis inclusivas, levando a sociedade a perceber que a pessoa com deficiência faz parte da população e é titular de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

Deverá ficar claro que, nessas leis comuns, a pessoa com deficiência está incluída como titular de direito aos mesmos serviços oferecidos à população e que serão previstas especificidades de usufruto desses serviços somente quando às condições de uma determinada deficiência assim a exigirem.

Em tal contexto, não haverá lugar para um estatuto separado sobre as pessoas com deficiência.

Todas as eventuais vantagens de um estatuto da pessoa com deficiência não compensam a anulação do processo de amadurecimento, evolução e conquistas, desenvolvido pelo movimento das pessoas com deficiência nos últimos 30 anos, no Brasil e no mundo.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Câmara aprova criação da Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência

Proposta busca garantir acesso das pessoas com deficiência às diversas esferas da vida social, seja por meio de políticas públicas ou iniciativas a cargo das empresas. Texto foi alterado pelos deputados e retornará ao Senado.
Gustavo Lima/Câmara dos Deputados
Apreciação da PL 7699/2006 que
Mara Gabrilli: texto está adaptado à Convenção da ONU sobre Pessoas com Deficiência.
O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira (5) o Projeto de Lei 7699/06, que cria a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, com a previsão de diversas garantias e direitos às pessoas nessa condição. A proposta, que era conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, foi aprovada na forma do substitutivo da relatora, deputada Mara Gabrilli (PSDB-SP), e será analisada ainda pelo Senado.
De acordo com o texto, é classificada como pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
“Foi mais de um ano de trabalho com a participação de juristas e especialistas e da Secretaria de Direitos Humanos para que chegássemos a um texto adaptado à Convenção da ONU sobre Pessoas com Deficiência”, afirmou a relatora, que tem uma deficiência adquirida devido a um acidente de carro.
A deputada lembrou também que recebeu sugestões da sociedade por meio do serviço e-democracia da Câmara dos Deputados.
A tônica do texto, que conta com mais de 100 artigos, é a previsão do direito das pessoas com deficiência de serem incluídas na vida social nas mais diversas esferas por meio de garantias básicas de acesso, seja por meio de políticas públicas ou iniciativas também a cargo das empresas.
Um dos pontos que ela manteve no texto foi o direito ao auxílio-inclusão para a pessoa com deficiência moderada ou grave. Terá direito a esse auxílio a pessoa com deficiência que já receba o benefício de prestação continuada previsto no Sistema Único de Assistência Social (Suas) e venha a exercer atividade remunerada que a enquadre como segurado obrigatório da Previdência Social.
Entretanto, o governo disse que não tem compromisso com a sanção desse dispositivo.
Lei de cotas
Quanto ao sistema de cotas para empregar trabalhadores com deficiência e reabilitados, o texto aprovado prevê que empresas com 50 a 99 empregados terão de reservar uma vaga para esse grupo. As empresas terão três anos para se adaptar.
Atualmente, as cotas devem ser aplicadas pelas empresas com mais de 100 empregados, em percentuais que variam de 2% a 5% do total de vagas, conforme quatro faixas.
Para estimular a real aplicabilidade desse sistema, o substitutivo muda a Lei de Licitações (8.666/93) para permitir o uso de margens de preferência nas licitações para as empresas que comprovem o cumprimento da reserva de cargos.
Nova regra imposta pelo projeto prevê que somente a contratação direta será contada, excluído o aprendiz com deficiência de que trata a lei da aprendizagem.
Cadastro
O texto cria o Cadastro Nacional da Inclusão da Pessoa com Deficiência com a finalidade de coletar e processar informações destinadas à formulação, gestão, monitoramento e avaliação das políticas públicas para as pessoas com deficiência e para a realização de estudos e pesquisas.
Prioridades
Várias prioridades são garantidas pelo texto às pessoas com deficiência, como na tramitação processual, recebimento de precatórios, restituição do imposto de renda e serviços e proteção e socorro.
Quanto a outros direitos diretamente garantidos por meio de cotas, o texto garante isso em várias áreas:
  • 10% das vagas em instituições de ensino superior ou profissional de nível médio e superior;
  • 3% de unidades habitacionais em programas públicos ou subsidiados com recursos públicos;
  • 10% de dormitórios nos hotéis acessíveis às pessoas com deficiência (dois anos para vigorar);
  • 2% das vagas em estacionamentos;
  • 10% dos carros das frotas de táxi adaptados para acesso das pessoas com deficiência;
  • 10% das outorgas de táxi para motoristas com deficiência;
  • 5% dos carros de autoescolas e de locadoras de automóveis adaptados para motoristas com deficiência;
  • 10% dos computadores de lan houses com recursos de acessibilidade para pessoa com deficiência visual;
  • recebimento, mediante solicitação, de boletos, contas, extratos e cobranças em formato acessível;
  • assentos em cinemas, teatros e outros locais de grande concentração de espectadores em locais diversos de boa visibilidade.