Artigo escrito por Miguel Melero, um dos faróis sinalizadores do moderno processo de inclusão.
IDEOLOGIA, DIVERSIDADE E CULTURA: UM COMPROMISSO COM MINHA
PRÓPRIA VIDA
Miguel López Melero –
Universidade de Málaga – Espanha
“ o custo do desenvolvimento de um míssil balístico transcontinental pode alimentar a 50
milhões de crianças, construir 160.000 escolas e abrir 340.000 centros de
saúde. O custo de um submarino nuclear é igual ao pressuposto anual de educação
de 23 países em desenvolvimento,
num mundo onde 120 milhões de crianças carecem de escolaridade e 11 milhões
morrem antes de completar um ano...” (Ruth SIVARD. Gastos Militares e Sociais
no Mundo)
E dizem que “todos os seres humanos pertencem à mesma espécie e têm a
mesma origem. Nascem iguais em dignidade e em direito e todos formam parte
integrante da Humanidade.” Todos os indivíduos e grupos têm o direito de ser
diferentes, a considerar-se e a ser considerados como tal...(Declaração da
UNESCO)
O professor Maturana nos lembra que “... do ponto de vista biológico
não há erros, não há disfunções, não há menos-valia... em Biologia, não existe
menos-valia. É no espaço das relações humanas onde a pessoa definida passa a
ser limitada.” (H. MATURANA. O Sentido do Humano)
No entanto, continua sendo certo isso de que “... o essencial é
invisível aos olhos; só se vê bem com o coração” (Antoine de Saint-Exupéry. O
Pequeno Príncipe)
1. Minhas idéias
Ao aceitar o convite
para participar deste Encontro de Educadores, promovido pela Revista
Kikiriki, comprometo-me a explicar meus sentimentos nesta primeira parte, que
denomino de “minhas idéias”. Pretendo explicitar minhas preocupações
intelectuais, minhas reflexões sobre o sentido do humano, meus sentimentos, meus conflitos
emocionais, pessoais e sociais, minhas dúvidas e convicções... e as minhas
crenças sobre a necessidade de construção de uma nova cultura que aceita,
conheça, compreenda e respeite
cada ser humano como ele é e não
como gostaríamos que ele fosse. Como dizem Berger e Luckman (1967): “os modos
de chegar a ser humano, e sê-lo de fato, são tão numerosos como as culturas do
homem.”
Há que compreender-se que o
discurso da diversidade é o discurso da legitimidade da outra e do outro. Até
que isso não seja compreendido, as pessoas não se comprometem com esse
discurso. Por isso a minha vida é um compromisso com a ação. Tudo o que dá sentido
à minha vida, como uma idéia coerente comigo mesmo, é uma tentativa de tornar
realidade o meu pensamento ideológico (mundo das idéias), epistemológico, e
metodológico do que eu entendo por realidade, por ciência, por cultura, por
ideologia e por diversidade. Mais precisamente, é tornar conscientes homens e
mulheres de que há uma classe social que opera de maneira dominante
(desumanizando) sobre outra. Mas o discurso é sempre o mesmo de dominadores e
dominados, como Freire nos recorda muito bem: “A verdade é que os dominados são
seres humanos a quem se proibiu de ser o que são. Têm sido explorados,
violados, e se lhes nega violentamente o direito de existir e de expressar-se”.
(1990, p-188)
Estou expressando, queridos
colegas, minha ideologia, ou seja, essa atitude que tenho diante da vida de
acreditar no que faço como algo que vale a pena. É simplesmente crer no ser
humano como ser humano... Somente se age quando se compreende isso, por que a
ideologia “se configura como um sistema de crenças e valores que proporcionam o
caminho para a ação e para o comportamento” (Apple, 1986, p-34). A minha
ideologia, como produto do meu pensamento, me inunda inteiro; não é algo
separado e independente do resto da minha vida me seu aspecto político, social
ou emocional. Todas essas são as coisas que dão sentido ao que eu faço.
Ideologia e diversidade são a minha própria vida.
Apenas se conhece tudo isso é que
será possível compreender – não peço que se compartilhe – o por quê de eu
selecionar umas teorias e não outras, por que me inclino mais a um enfoque
metodológico do que a outro e por quê concebo a ciência como uma forma de
pensamento e de ação compartilhada e genuinamente humana, comprometendo-me com
os valores que guiam qualquer atividade da minha vida para o encontro do ser
humano consigo mesmo.
Por isso tudo, minha gratidão aos
organizadores por me oferecerem esta nova oportunidade de compartilhar com
todos vocês essas reflexões, com a firme convicção de que isso vai nos unir em
um compromisso permanente para buscar a verdade, a beleza e a bondade da vida.
Talvez consista nisso o sentido da nossa própria existência.
Minhas palavras são, portanto, um
convite ao diálogo como única via para a construção de um discurso
compartilhado entre vocês e eu, para que nos unamos em um sentimento comum que
propicie uma mudança profunda em nosso pensamento e em nossa ação como
educadores comprometidos (pensamento e ação compartilhada = ciência), e nos
emocione na construção da cultura da diversidade com um pensamento claro do que
entendemos por “cultura da diversidade”. Provavelmente aqui, no conceitual,
resida uma das grandes dificuldades para entender que a cultura da diversidade
é um discurso eminentemente ideológico, e seja entendido mais como um slogan de
moda da inovação educativa do que como uma verdadeira transformação no
pensamento e na prática pedagógica, que exige outro modo de educação
considerando a diferença como valor no ser humano.
Ao estabelecer a emoção como base
do conhecimento para a construção desta nova cultura, o faço convencido de que
a compreensão do que significa ideologicamente a cultura da diversidade nos
permitirá compreender as duas grandes crises em que se encontra a humanidade neste final de século para que,
a partir dessa conscientização crítica, iniciemos projetos de mudanças para a
reconstrução da crise da civilização e da crise ecológica. Nos vemos envoltos
nessas crises por um lado pelo desenvolvimento desenfreado das ciências físicas
e naturais dos séculos XIX e XX e, por outro, pelos interesses
técnico-científicos e econômicos do final do século XX. Somente a partir dessa
definição se compreenderá que a cultura da diversidade é, principalmente, um
discurso ideológico.
A verdade é que, historicamente,
todos os esforços para levar a cabo transformações e mudanças sociais e
culturais vieram precedidos por visões gerais sobre a natureza da humanidade e
da sociedade – ou seja, por uma concepção da sociedade e da mulher (do homem), e por uma
concepção da mudança social e educativa. É essa também a nossa proposta na hora
de abordar o discurso da cultura da diversidade frente ao discurso da cultura
da deficiência na escola pública. Quer dizer , como conduzir as mudanças e as
transformações que a cultura da diversidade requer em um sistema educativo que,
por definição e por lei deve se desenvolver assim (LOGSE) e, no entanto, neste
momento está condicionado por um governo conservador? O sistema político,
econômico social e educativo do governo espanhol é conservador, e o subsistema que abrange a cultura da
diversidade é eminentemente progressista e transformador. Como desenvolver a cultura da
diversidade, que é a cultura da cooperação, do respeito, da solidariedade, da
justiça, da ética, da democracia... e do amor, a partir de um sistema
neoliberal que é competitivo, não-solidário, discriminador, sectário, machista,
consumista, oportunista, narcisista...?
Minha hipótese, neste âmbito
concreto, partindo do ponto de vista da ciência e da tecnologia, é que se está
criando uma relação biunívoca e muito perigosa. Uma ideologia da ciência
neoliberal (cientificismo) à qual se outorga o papel de propor objetivos para a
aplicação do seu produto, cabendo à tecnologia o papel de aplicar os princípios
da ciência. E, nesta dependência mútua, exercem o seu poder para produzir
formas de conhecimento, relações sociais e outras formas culturais que vão
operar de um modo muito sutil para silenciar ativamente as pessoas. Essa forma
de entender a ciência, ou o cientificismo, é, a meu ver, a ideologia mais
perigosa e mais poderosa da sociedade neoliberal e pós-moderna – mesmo que
geralmente são seja reconhecida como uma ideologia perigosa em si mesma – por
que não se cria nada de novo nem se produze um desenvolvimento da imaginação do
ser humano. Ela apenas nos mantém no “limbo” científico permanente. Nós já
sabemos que esse estado límbico é o mais próximo do conservadorismo, que nos
quer fazer esquecer que debaixo dessa sociedade liberal e pós-modernista há uma
dominação da classe poderosa e hegemônica. Alguns companheiros e algumas
companheiras caem nesse êxtase deslumbrante, quase messiânico, do limbo, e se
vêem completamente presos nessa teia neoliberal. Esse cientificismo é a nova
religião intelectual para que permaneçamos dentro desse estado límbico, sem
reflexão nem compromisso, sendo meros instrumentos industrializados da cultura
hegemônica.
A ciência da ideologia ou a
ciência da ideologia? A ideologia reinante na sociedade pós-moderna
(neoliberal) só poderá desaparecer se o cientista sabe superar essa relação de dependência entre a ciência e a
tecnologia, evitando, com esse comportamento, ser um escravo do poder. Temos o
exemplo mais claro desse cientista na universidade (exemplo por excelência da
comunidade científica), onde o conhecimento intelectual adquire o status de
virtude - objetivo, independente,
desinteressado, apolítico... -, e o professorado, docente e investigador, são
homens e mulheres da ciência – assexuados, dóceis, obedientes, sem manchas – exemplos “in vitro” da ciência pós-moderna.
Temos que estar muito alertas
para não cair nesse novo poder da ciência a serviço do neoliberalismo, que
converte o fazer científico em mera mercadoria. Temos que evitar que a ciência
seja a serva do poder (conhecimento capitalizado = fetichismo) e, portanto, a
alienação do pensamento humano. A ciência do neoliberalismo é a
pseudograndeza dos
medíocres.
Meu pensamento é que a ciência é
incapaz de proporcionar respostas duradouras e imperecíveis. Não existe uma
unidade dos conhecimentos com caráter absoluto e anti-histórico, nem
objetividade isenta de erro. O mais importante é que o ser humano não veja
castrado o seu sentimento de mudança e de transformação. Aprendemos a ser
cientistas e a fazer ciência do mesmo modo que aprendemos a ser pessoas:
humanizando-nos. E isso se consegue através da convivência e do amor. O amor, e
não o fogo, é o grande descobrimento da humanidade.
Concebo a ciência como uma
atividade eminentemente humana (pensamento e ação cheios de emoção e
compartilhados). Ou seja, uma atividade social e humana que se insere na
própria vida e, por isso, a
ciência não escapa à sua própria dialética. A ciência é um poderoso fator para
colocar a si mesma ou às premissas nas quais se sustenta nas entrelinhas, e não
se desenvolve à margem do ser humano. Ela deve ser entendida como algo por
fazer e não como algo acabado, e o cientista deve ser entendido como pessoa,
como sujeito ativo do seu próprio pensamento e da sua própria ação e, carregado
de emoção (o pensamento em ação), evitará de ser preso na armadilha, como um
ser paciente neste mundo coisificado (determinismo) , e deve elevar-se como ser
pensante e não como mero
administrador.
Penso que devemos assumir o
componente ideológico e social que condiciona o nosso trabalho científico. O
cientista, como qualquer um de nós, não pode libertar-se do seu próprio
contexto cultural, que condiciona a sua metodologia e os seus resultados. O
percebido e o perceptor estão dentro da própria percepção. Há que ver-se o
mundo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Nesse conhecimento mora
a dignidade humana.
Como se pode reconciliar a
humanidade para superar a crise dupla da ecologia e da civilização? Minha
resposta é muito simples e, devido a essa simplicidade, pode-se pensar que é
ingênua ou pouco relevante. Porém, a meu ver, somente se alcançará essa
reconciliação caso se esqueça o poder da ciência física, se reconduza os papéis
da economia, da tecnologia e da robótica que o sistema neoliberal desenvolveu.
Deve-se ver como ciência do futuro a Biologia (para superar a crise da
civilização) e a Pedagogia (para superar a crise da natureza) E, nessa
superação, encontraremos o sentido do humano. É simples: o sentido do humano
não está no desenvolvimento desenfreado
das ciências da natureza e
de seus produtos, mas nas ciências sociais e na sua cultura.
Quando afirmo que o sentido do
humano reside nessa superação dos
interesses técnico-científicos e econômicos, estou me referindo também a que
devemos voltar o olhar para nós mesmos, já que, como pessoas, dispomos de um
maravilhoso e excepcional instrumento – a mente humana – e, portanto, se
soubermos entrar em nosso próprio pensamento, é certo que encontraremos os
meios necessários para imaginar e criar um mundo melhor. É tão difícil
imaginarmos um mundo melhor onde
impere o amor entre os seres humanos, e não o ódio?
Certamente que a passagem a esse mundo novo necessita de mudanças psicológicas e
sociais ainda muito difíceis de predizer ou de imaginar. Sabemos que, na
atualidade, as mudanças na biologia do ser humano (fecundação in vitro, clonagem, a escolha de um
filho ou filha sem o reconhecimento do pai ou da mãe, a microbiologia...), os
movimentos homossexuais, os novos papéis e responsabilidades da mulher no mundo
econômico e social, os movimentos migratórios, a mestiçagem, são manifestações
valiosas (valores) da atual socialização que nossos filhos e filhas estão vivendo como um novo modelo
cultural das gerações mais jovens, não assumido por grande parte das gerações
mais velhas. Um novo mundo com um
novo modelo cultural que vai lhes permitir outra dimensão na liberdade sexual e
afetiva, outro modo de relacionar-se entre as diferentes etnias e uma nova
reconceitualização da família e da sociedade em geral.
Uma sociedade competitiva a
não-solidária, dominada até agora pelo masculino, há de dar lugar a uma sociedade mais solidária e respeitosa
com as diferenças, onde homens e mulheres descubram juntos em que consiste o
ser humano. Não se trata de mudar de uma sociedade dominada pelo homem a outra
dominada pela mulher, mas sim do descobrimento do homem e da mulher no viver
cotidiano. Como nos diz Maturana: “Na convivência da biologia do amor e no
conviver centrado na dignidade e o respeito pelo outro e por si mesmo, na
colaboração, na harmonização estética com o mundo natural ao qual se respeita e
não se explora, na valorização da sexualidade e do intelecto” (Maturana, 1994,
p.68)
Eisler (1996) nos diz que tudo
isso será alcançado “através da cultura da solidariedade, sendo que esta é o
fundamento de uma cultura não alienada (...) em um mundo onde seja mais
importante a qualidade do que a quantidade de vida.”
Se soubermos incorporar estas
novas formas de pensar e de atuar, de sentir e de conviver, e abrimos nosso
pensamento para esse futuro imediato, incorporando novos valores, mudaremos não somente a sociedade –e,
conseqüentemente, a escola. Nós mudaremos a nós mesmos.
É verdade que se está anunciando
a morte ou o final do mundo. Um mundo que foi construído sobre uma educação
competitiva e não solidária, que prioriza conhecimentos ao invés de valores.
Este mundo está morto. É necessário
um outro mundo onde se reconheça
que a diferença entre as pessoas é um valor e não um defeito. Não
existem duas papoulas iguais.
Neste discurso, merece uma
reflexão sobre o que eu entendo ser essa sociedade claramente hegemônica e
dominante. Mas tenho que fazê-lo de maneira bastante breve, sem esquecer dos
aspectos fundamentais.
Dizer que, desde os anos 70, a
ideologia neoliberal está cada vez mais hegemônica, não apenas nos países
desenvolvidos, mas em todo o planeta, como uma nova religião que invade tudo: o
político, o econômico, o social... Não é fácil definir o que é neoliberalismo,
tanto pelos campos aos quais ele se estende quanto pelo número de sinônimos que ele pode
representar. Mas não nos esqueçamos de que todos esses sinônimos são
manifestações do pensamento conservador. No entanto, permitam-me apenas umas
poucas palavras a respeito do que eu entendo por neoliberalismo, para
compreendermos a encruzilhada educativa em que nos encontramos. São apenas umas
pinceladas para uma melhor compreensão da cultura da diversidade.
a)
No plano econômico: o livre mercado. O mundo é um
mercado. Tudo pode ser comprado ou vendido se o mandam os poderosos. Inclusive,
se compra e se vende o conhecimento. E a nós, europeus, como nos defende o
Parlamento Europeu? O Parlamento Europeu não apita nada, é um servidor dos
poderosos, e Maastrich é a norma imposta pelo sistema econômico
(fundamentalismo econômico neoliberal).
É necessário
um esforço para melhorar as condições
de qualidade de vida de todos os seres humanos. Como é possível, se
todos nascemos iguais em dignidade e direitos, que se produza esse
desequilíbrio onde 80% da riqueza do mundo está nas mãos de 20%?
b)
O Estado à venda:
o papel que o Estado desempenha é mínimo - ele depende dos poderosos e esses só têm uma axiologia: a
economia. As privatizações das empresas rentáveis é o objetivo dos governos
conservadores. O objetivo as empresas é sempre o de ganhar dinheiro, não o de
prestar serviços à comunidade. Os cidadãos deixaram de ser cidadãos para
transformar-se em consumidores.
c)
No âmbito social: criam-se três classes sociais: a
classe privilegiada, cada vez mais minoritária, que controla e regula o resto
da sociedade; a classe média, que
é a encarregada pela classe dominante de fazer as mudanças que ela dirige e que
sofre os ajustes e reajustes, e uma terceira, que emerge e que cada vez é mais majoritária, que á a dos desempregados e dos
marginalizados (a sociedade inviável). Na atualidade, uns 200 milhões de
pessoas estão mal nutridas, outros
100 milhões são analfabetos, 1,3 bilhões encontram-se em estado de pobreza
absoluta... Na União Européia, há 48 milhões de pobres e na Espanha há 9
milhões de pessoas que se encontram abaixo do limite de pobreza.
E quem vai se encarregar de
proclamar essa nova ortodoxia neoliberal? O neoliberalismo tem isso claro. Como
tudo se compra e tudo se vende, serão os meios de comunicação que se ponham a
seu serviço e a nova revolução técnico-científica. Sob o amparo de uma falsa
imagem e da interpretação de uma
pseudoliberdade, nos vendem o conceito de liberdade como consumismo, e nos
vemos envolvidos por esta sociedade consumista, criando para nós mesmos novas
necessidades – como se realmente fossem necessidades – e entramos no jogo do mais feroz
consumismo.
A conseqüência desse pensamento
neoliberal é a castração mental no plano ideológico e a hegemonia do econômico
frente ao social e ao cultural... Se cria no cidadão a necessidade do consumismo
e de novas necessidades (o êxito está nos negócios e a economia é a nova
axiologia. Vale-se pelo quanto se produz e não pelo quanto se põe ao serviço do
outro, do menos favorecido), propiciando um mundo de competitividade,
priorizando as empresas pessoais e privadas em lugar das cooperativas e
solidárias. Quando se vive para si mesmo sem levar o outro em conta, se vive em
um vácuo de felicidade.
Tudo isso está entrando
perigosamente no pensamento do professorado, dos pais e dos alunos (de modo
especial, no pensamento da juventude), criando-se uma atitude imobilizante e
conformista que é, a meu ver, a pior de todas as drogas, a que vai destroçar o
núcleo do ser humano: a legitimidade no conviver com o outro.
No sentido gramsciano do termo,
nos encontramos em um momento de crise, por que os velhos parâmetros estão
agonizando e os novos ainda não acabaram de emergir. Penso que a cultura da
diversidade está colocando em cheque o fim de uma época educativa (uma nova
escola para uma nova civilização). Esse clima cultura de pós-modernidade reúne
uma série de características que vou sintetizar:
-
Ceticismo: precisamente por descrédito à razão e por
tudo aquilo que esse descrédito pode proporcionar, enquanto surge uma grande
valorização das sensações e intuições;
-
Neofilismo: um amor desmesurado pelo novo, pelo simples
fato de ser novo;
-
Consumismo: como uma nova liberdade de fazer-se de tudo
contra a idéia da poupança;
-
Esteticismo: uma supervalorização da imagem frente à
ética;
-
Oportunismo ou ocasionalismo: o viver aqui e agora. Não
há perspectiva de futuro, tudo é presente. E esse presente é construído
reciclando-se (a era do plástico) o passado;
-
Ahistoricismo e fim da história para compreender o
mundo e, através dela, projetar o
futuro;
-
Individualismo exacerbado, ou seja, viver para si
mesmo, superficializando os vínculos e os sentimentos.
Esse pensamento neoliberal e
pós-moderno que estou descrevendo resumidamente originou a cultura da falta de
solidariedade e da intolerância ou, como define Lasch, “a cultura do
narcisismo”, precisamente por que esta era pós-moderna anulou a solidariedade,
matou a política e criou um mundo onde cada um vive para si, dono de um grande
vazio e supostamente feliz.
Nesse contesto de mercantilização
do saber que eu venho descrevendo e expressando as minhas idéias, desejo
ressaltar o sentido que dou à modernidade, como uma tomada de consciência com
uma época que tinha como idéia central de si mesma o sentimento de mudança
permanente e o compromisso diário, mesmo que considerado “antigo e clássico”.
Me oponho a que a dialética do espírito, a que emancipação da pessoa através da
razão e da reflexão se transformem na pragmática da cultura do consumismo. Eu
quisera ser utópico ou mesmo pragmatópico no sentido de que é aqui, e nestes
momentos difíceis, onde está o lugar onde
homens e mulheres
encontraremos o sentido do humano. Não podemos dar por perdida a
mensagem do projeto de transformação e de mudança permanente que o sentido habermaniano de
modernidade trazia em si. “A modernidade é um projeto inacabado” (Habermas,
1994).
A escola pública, como produto da
modernidade, foi pensada como lugar onde se deviam desenvolver valores e
conhecimentos de verdade e justiça, de liberdade e respeito, de tolerância e
de solidariedade, de beleza e de
bondade. Porém esses valores foram desvirtuados por causa do descrédito na
razão, e a escola encontra-se frente à necessidade de enfrentar o pragmatismo
da eficácia “enlatada” dos conhecimentos sem reflexão alguma, quer nos sejam
apresentados em “caixas vermelhas” ou em “caixas verdes”.
Vivemos hoje um tempo de reformas
do “armário curricular” – caixas vermelhas ou caixas verdes, ou seja, o armário
Nacional ou Autonômico. No entanto, se fazemos uma leitura das suas
fundamentações científicas, logo nos daremos conta de que nos novos modelos “instrutivos”, a cultura da
diversidade não entrou. É à escola que se deve exigir um compromisso para
elaborar e difundir conhecimentos articulados e corretos sobre as diferentes
culturas, aos invés de um compromisso para realizar programações e intervenções
didáticas individualizadas, como se costuma anunciar-se por lei quando se fala
do quarto nível de concretização. Tampouco não nos esqueçamos de que este modo
de interpretar a cultura da diversidade, “estacionando” as pessoas com
deficiência em lugares individualizados e isolados de instrução, também está
carregado de um tipo de ideologia, mesmo que se afirme que não tem ideologia
nenhuma. O ensino está carregado de intencionalidade.
Se não se analisa esse fantasma ,
essa coreografia, com muito cuidado, nos veremos envolvidos no falso discurso e
na entrada em cena de uma cultura neoliberal e monocultural que não respeita o
direito de ser diferente.
A Europa de 2000 está se
desenhando sob a tutela de duas grandes ameaças que, a meu ver, são uma só: a filosofia neoliberal e a
filosofia da cultura única. E, sobre a base de um axioma hipócrita de reconstrução européia se funde a idéia
neoliberalista, apoiada em uma idéia econômica que consagra a naturalidade das
desigualdades e sobre uma idéia cultural que dá mais a quem tem mais.
Segundo a OMS, existe no mundo
meio bilhão de pessoas com deficiência, dos quais 80% vivem em países em
desenvolvimento. Quer dizer, uma pessoa em cada dez sofre algum tipo de
dificuldade física, mental ou sensorial, comprometendo, indiretamente, ao menos
uma quarta parte da população mundial. Nos países da Comunidade Européia, os
cidadãos com deficiência superam os trinta milhões. Na Espanha, representam de
10 a 12% da população e, desses, dois ou três milhões não são autônomos.
O propósito fundamental dos
movimentos educativos críticos – e a cultura da diversidade o é – é o de desenvolver teorias e
práticas de progressistas que contribuam para a emancipação pessoal e social. Essa complexa
tarefa requer a cooperação de
todas aquelas pessoas que não se sentem identificadas com o tipo de sociedade e
de educação em que nos encontramos imersos. O caminho se faz ao andar, já nos
dizia o nosso bom Antonio Machado, mas ele está cheio de incertezas e de
dificuldades. Mas nós, os
profissionais comprometidos, não podemos renunciar ao nosso compromisso de
mudança e de transformação profundos. E isso exige um trabalho cooperativo
entre todos. A cultura da diversidade é a cultura da cooperação.
O que eu tento dizer é que neste
projeto de sociedade e homem diferentes para o século XXI, o professorado, como
profissionais do ensino, e outros, como responsáveis políticos, temos que ir
construindo a escola do século XXI (o que significa dizer “a sociedade do
século XXI). Uma escola que ensine a pensar e a descobrir a cultura (as
culturas). Uma escola que faça mulheres e homens pensantes e sensíveis à
diversidade e não meros administradores. Uma escola que faça homens e mulheres
democratas e livres, vivendo e transformando a democracia em liberdade.
Provavelmente haja várias
maneiras de tomar o pulso de uma sociedade, mas uma delas, a partir de um ponto
de vista cultural, vem determinado pela maturidade ética dessa sociedade
exemplificada - o lugar que ocupam
as minorias na vida social. Essa maneira de tomar o pulso da sociedade partindo
de um ponto de vista cultural vem determinado pelo nível ético da escola,
focalizado nas condições de saúde, educação, meios e recursos e indicadores de qualidade de ensino – que
são os indicadores da qualidade de vida.
Este encontro entre os
profissionais do ensino é uma oportunidade para expressar os meus pensamentos
sobre o papel da escola no final
do século como agente de transformação social. Considero que um dos desafios
mais importantes que o professorado vê
diante de si é o de saber
atender adequadamente às necessidades
das crianças que chegam à escola.
Eu aceito, plena e
conscientemente, a responsabilidade que abrange a ação pedagógica, e exerço a
minha profissão com prazer. O trabalho não me é um sacrifício, ao contrário,
desfruto da profissão, afrontando as dimensões social e política que são parte
dela em minha atividade docente e investigadora com todos os seus riscos e suas
conseqüências. Fiz da minha profissão uma opção política e educativa – que não
é outra coisa a não ser uma opção de vida.
O que significa para mim opção política? Opção política
é tomar uma posição frente à
realidade social, é não permanecer indiferente ante o atropelamento da justiça, ante o desprezo da
liberdade, ante a violação dos direitos humanos, ante a exploração dos
trabalhadores e das trabalhadoras, ante a falta de respeito à mulher, ante a
intolerância política, religiosa ou ética. Enfim, é tomar partido da justiça,
da liberdade, da democracia, da ética, do bem comum. É uma opção política e é
fazer política. Opção política e educativa é lutar pela cultura da diversidade
frente à cultura da deficiência, e esta é a minha ideologia e a minha vida.
2. Meus argumentos
Por tudo o que já foi dito até aqui, gostaria, a partir
deste momento, de deixar claros alguns princípios que justificam o meu
pensamento no tocante ao discurso da cultura da diversidade frente ao
discurso da deficiência como um
compromisso pessoal. Refiro-me concretamente ao seguinte:
a)
a que sejam o respeito, a tolerância e a liberdade de
pensamento os princípios que nos permitam construir a cultura da diversidade
frente à cultura da deficiência. Me explico: penso que há de ser a
racionalidade quem torne mais razoável a própria razão quando falemos da
cultura da diversidade – simplesmente
por que não se entende bem o que significa e o que exige essa nova
cultura. Quando falamos de racionalidade, nos referimos a ter um “pensamento
claro” que melhore a nossa compreensão da cultura da diversidade. Eu chamaria
de “racionalidade” a que, se nesta sala se argumenta sobre como se mudará a
escola e a sociedade, imediatamente nasça em todos nós o compromisso de mudar
as nossas atitudes e a nossa prática educativa e social. Estamos no caminho de
projetar outro modo de ser pessoa.
b)
quando falo de diversidade, não me refiro às pessoas
socialmente reconhecidas como deficientes. O faço partindo de um pensamento
amplo que inclui o gênero, a enfermidade, a deficiência, a raça..., ou seja, os
coletivos e as culturas minoritários que, durante tanto tempo, tiveram que
suportar (e ainda suportam) os critérios das culturas majoritárias. Não
podemos nos esquecer que o
conhecimento, a informação e a tomada de decisões nos vêm impostos pela classe
dominante – e é por isso que temos que montar novas estratégias para safar-nos
das perigosas e tentadoras redes neoliberais.
c)
neste sentido, desejo esclarecer o que entendo por
diversidade, o que entendo por diferença e o que entendo por desigualdade. A
diversidade faz referência à identificação da pessoa, por que cada um é como é,
e não como gostaríamos que fosse
(identidade). Esse reconhecimento é precisamente o que configura a
dignidade humana. A diferença é a valoração (portanto, algo subjetivo) da
diversidade, e é exatamente essa
valoração que abriga várias manifestações, sejam de rejeição (antipatia,
xenofobia, racismo, intolerância...) ou de reconhecimento (simpatia, xenofilia,
tolerância...). É a consideração da diversidade como valor.
Estabelecidos os princípios que
me levaram a participar deste evento e esclarecidos alguns conceitos
relacionados à cultura da diversidade, a questão será não apenas saber
descrever, analisar e valorar a sociedade consumista, competitiva e não
solidária em que vivemos nestes dias. A questão será como chegar a esta outra
sociedade cooperativa e solidária depois de tudo o que temos vivido desde as primeiras
civilizações conhecidas.
Certamente há que reconhecer que
é difícil pensar ou imaginar um mundo diferente, mas não nos resta outra opção.
A evolução humana se encontra em uma encruzilhada. A tarefa fundamental dos
pensadores e cientistas não é somente de descrever e de alertar sobre os males
que nos cercam, mas sim de comprometer-se em buscar modelos educativos que
permitam, a partir da mesma escola
como agente de transformação social, um outro modo de organização da sociedade
para o século XXI e o desenvolvimento das nossas diferenças como seres humanos,
sem produzir desigualdades. Refiro-me simplesmente à necessidade de construção
de uma nova escola (de uma nova educação) para uma nova civilização.
Eu falo por mim, que sou pedagogo
e não médico. Que sou educador, não
psicólogo. E, por isso, vou falar de educação e não de terapia, por que,
depois de tudo, como dizia Kant, cada pessoa chegará a ser pessoa pela sua
educação. Ou, como nos diz Maturana, cada homem se diferencia singularmente de
outro homem não por razões biológicas, mas sim por que há diferentes crenças,
comportamentos e pontos de vista distintos. O respeito à diferença implica o
reconhecimento de ser diferente, e a tolerância é o valor essencial de que a
cultura da diversidade necessita.
Esta nova escola que anunciamos
somente se construirá sobre as bases da aceitação de que todas as pessoas são
diferentes. Aceitar esse princípio é iniciar a construção do discurso da
tolerância, o que é a mesma coisa do que educação intercultural. Essa
escola tem que educar para o
respeito às peculiaridades e idiossincrasia das culturas minoritárias – só
assim se poderão evitar as desigualdades. Essa escola que tem como princípio
prioritário a educação na
diversidade é a mesma que lutava pela igualdade de oportunidades dos anos
sessenta. Hoje, das circunstâncias histórico-culturais, econômicas e sociais
dos anos 90, falamos de educação intercultural, mas estamos reivindicando o
mesmo que nos anos 60: uma
sociedade mais solidária, mais justa, mais livre, enfim, mais humana.
Em uma sociedade multicontextual
e multicultural como a que descrevemos sucintamente, a dimensão educativa deve
responder não apenas a compartilhar novos modelos de sociabilidade, de
percepção de si mesma em relação ao outro. Deve também aspirar ao nascimento de
novos estilos cognitivos baseados
na relatividade dos pontos de vista e em sua possível descentralização.
A educação intercultural, a educação para a mundialidade, não pode prescindir
de uma ética da responsabilidade individual e coletiva.
Ser mulher, ser homossexual, ter
síndrome de Down, ser negro, ser paralítico ou simplesmente ser apenas mais um
no meio de todos é um valor. A natureza é diversificada e não há coisa mais
genuína no ser humano que a diversidade. A diversidade faz referência a que
cada pessoa é um ser original e irrepetível. Em uma sociedade, há grupos
diferentes, há pessoas diferentes, pensamentos e pontos de vista diferentes. A
natureza e o ser humano são maravilhosos em suas diferenças.
Nesta visão da diversidade, a
educação intercultural deve ser considerada como um instrumento para reduzir as
desigualdades que se manifestam na sociedade. A perspectiva intercultural supõe
uma reconceitualização do valor da diferença na direção dos princípios de
igualdade, justiça e liberdade para estabelecer um compromisso permanente com
as culturas minoritárias. O que realmente é importante não está em desenvolver
os princípios de justiça e de igualdade: está em desenvolver o princípio de
liberdade. Ou seja, não há apenas que reconhecer alguns direitos. As culturas
minoritárias têm que ter a liberdade de desenvolvê-los, de colocá-los em
prática e de desfrutá-los. Não falamos de caridade. Falamos de direitos.
Isso tudo deve dar suporte a
reflexões mais profundas – ao menos eu as faço – ao considerar a cultura da
diversidade como processo de mudança de papéis e funções dos componentes que
constituem a sociedade em que vivemos. O que eu quero dizer quando falo de
educação intercultural é que temos que ir criando uma cultura escolar que
permita atender aos alunos respeitando as suas diferenças, de tal maneira que o
pensamento pedagógico dos professores mude e se considere as pessoas diferentes
cognitiva, social, cultural e etnicamente, como uma oportunidade de melhorar a
sua prática profissional e não como ocasiões para estabelecer desigualdades.
A cultura da diversidade não
consiste em buscar o melhor modelo educativo individual para as pessoas
diferentes, mas sim em que toda a cultura escolar se encha de diversidade. Não
é questão de buscar adaptações curriculares, mas de buscar outro modelo, outro
sistema educativo, outro currículo que conheça, que compreenda e que respeite a
diversidade.
Por que é difícil de aceitar
isso? É difícil aceitar esse princípio por que a sua aceitação abre o caminho
para manifestar o compromisso com o conhecimento, à compreensão e ao respeito
ao outro, para que, através desse outro, eu aprenda em primeiro lugar a ser
professor (a), mas, sobretudo, a ser pessoa. É aceitar que eu, como
professor(a) sou diferente e que cada um dos meus alunos são diferentes. Aceitar isso significa que a escola se
converte em uma comunidade de aprendizagem permanente, já que o próprio
professor se considera, por sua vez, um aluno que está aprendendo a resolver
problemas em companhia de outras pessoas. E, com essa mudança de atitude dos
professores, se produzirá melhora na aprendizagem dos alunos.
Nesse processo de mudança
permanente que a cultura da diversidade requer, os processos de ensino e
aprendizagem são simultâneos. Por isso, podemos dizer que há apenas um processo
– “aprender a aprender” uns dos outros. E não é necessário falar de ensino como
um sucesso, e sim de que é um processo permanente de aprendizagem mútuo e
autônomo (autoaprendizagem). A escola da diversidade se centra, principalmente,
em aprender estratégias para a resolução de problemas da vida cotidiana de maneira
cooperativa e solidária. Este é o sentido que eu dou à escola pública. E quando
falo da escola pública, não me refiro à escola estatal, e sim a esse modelo sem
exclusões, onde cabem todas as pessoas.
Precisa-se de tempo para
compreender tudo isso. Sim, precisa-se de tempo para aprender e tempo para
encontrar satisfação nos novos
procedimentos de trabalho cooperativo em aula. A cultura da diversidade é um
processo de aprendizagem permanente, onde todos temos que aprender a compartilhar novos significados e novos
comportamentos de relação entre as pessoas. A cultura da diversidade vai nos permitir construir uma escola de qualidade, uma didática
de qualidade e profissionais de qualidade. Todos vamos “aprender a ensinar a
aprender”. A cultura da diversidade é uma maneira nova de educar(nos), na qual
alunos e professores constroem um conhecimento escolar que torne compreensíveis
as razões da diversidade entre as
diversas culturas e o respeito às mesmas e aprendam a saber analisar as causas
das crescentes desigualdades e intolerâncias no mundo, através do
desenvolvimento de atitudes solidárias e de defesa dos direitos humanos.
Tudo isso permitirá que as
crianças e os jovens em geral vão adquirindo uma cultura diferente ao viver as
diferenças entre as pessoas como algo valioso, solidário e democrático. Da
diversidade cultural, étnica, de gênero e lingüística surgirão necessidades
educativas diferentes – mas
valiosíssimas - que temos que
contextualizar, sequencializar, temporalizar e buscar estratégias metodológicas para que se desenvolvam.
Partindo da consideração do currículo como um processo aberto e flexível e da
aposta por uma escola que acomoda as diferenças (e não o contrário), estaremos
considerando a escola como agente de transformação social.
Que fique bem claro que, quando
falamos da cultura da diversidade, falamos de educar não “para” a democracia
nem para a liberdade ou para a justiça, mas educar “na” liberdade e na
justiça.Não se trata de ensinar o que é a cultura da diversidade, mas de viver
democraticamente a diversidade. É outro modo de educar-nos com as pessoas
diferentes. E isso se alcança através do diálogo, da compreensão e da
participação ativa em aula.
Segundo a tese de Baudelot e
Establet (1987), a escola fracassou em sua missão oficial de democratização e
de igualdade. Não somente não contribuiu para diminuir a oposição entre classe
dominante e classe dominada, mas está a serviço dessa oposição e tende a
reforçá-la. O processo educativo se torna angustiante e aborrecido. Neill costumava
dizer em sua obra Summerhill que uma criança que consiga falar sem medo diante
de um grupo e expressar-se livremente vale muito mais do que mil palestras
sobre democracia. Procurar que, no decorrer de todo o processo educativo, a
criança atue como pessoa livre e responsável, é educar na democracia, na
justiça e na liberdade.
Este movimento da cultura da
diversidade não supõe apenas uma mudança estrutural nas instituições. Requer
uma mudança profunda no político-ideológico, nos sistemas de gestão administrativa,
nos conceitos psicológicos, nos princípios e nos sistemas educativos, e nas
relações de comunicações entre as pessoas. A democracia não pode e não deve ser
uma enteléquia para camuflar uma ideologia, mas uma prática diária na família,
na escola, no bairro, e em todos os lugares e momentos. Buscamos, em
conseqüência, uma escola comprometida na recriação de uma democracia
participativa e na vivência de um pluralismo de idéias. Nossa democracia formal
ainda não tem escolas democráticas autênticas. A escola pública e seus
educadores têm esse compromisso.
Considero, portanto, a educação
como essa mudança na vida, e não apenas no âmbito intelectual. A educação é um
conceito que faz referência ao conviver, a um modo particular de convivência. A
educação faz referência a um modo ideal, como se fosse uma aspiração, um ideal
de ser humano. A educação é um fazer na convivência, como espaço emocional e
amoroso de mútuo respeito. O contrário é manipulação (Maturana, 1994).
Dirige-se à pessoa em sua totalidade (educabilidade), dirige-se à pessoa como
um todo significativo e holístico (totalidade, integridade, individualidade,
originalidade). No entanto, eu situo o ensino em um plano de comunicação em um
plano intencional (práxis). Sem a práxis, nem professor nem aluno se constroem.
O ensino é uma ação transformadora consciente que supõe dois momentos inseparáveis: ação e reflexão,
de modo dialético. O ensino é um modo de fazer com que os outros aprendam,
também aprendendo quem ensina. É como colocar em prática aquela aspiração de
que falamos anteriormente.
Nesse sentido, no processo de
ensino e aprendizagem, sempre nos encontramos frente a comportamentos e
condutas carregados de significado. O ensino é muito mais do que uma mera
coleção de habilidades técnicas,
muito mais do que um conjunto de procedimentos, muitíssimo mais do que um
punhado de coisas para aprender. O ensino é um compromisso social, é uma
responsabilidade moral, para que as crianças cheguem a ser pessoas democratas e
livres. Precisamente ao considerar o ensino como um ofício moral é que ele se
carrega de intencionalidade, que ele tem valor. Eu ensino para algo ou para alguém. Não se ensina por
ensinar. Para que se ensina hoje em dia em nossas escolas? Se ensina para algo
e por algo ( útil = vale a pena).
A educação moral não pode
separar-se da prática escolar, mas ainda precisa impregná-la. A educação moral
não pode reduzir-se a ensinar a meninas e meninos um conjunto de conhecimentos,
de normas e de procedimentos. Na medida em que os processos de ensino e
aprendizagem abarcam tanto professores quanto alunos, e se constrói uma rede de
significados e de comportamentos compartilhados (cultura escolar), estamos
falando de uma educação para a convivência. A educação deve estar centrada na
formação humana, e não apenas técnica,
das crianças – mesmo que essa formação se realize através do técnico.
Deve fazer-se de maneira cooperativa e não competitiva, na qual se corrige o
fazer e não o ser da criança.
Porém, há mais: o ensino está
unido a quem ensina. Eles não podem dissociar-se. O ensino tem biografia. O
professor é uma pessoa, quer dizer,
tem ideologia, sentimentos, crenças, sexo. Não há nada de místico no
ensino: há simplesmente que saber relacionar o que se vai ensinar com algo da
vida cotidiana, levando em conta as condições de quem ensina e de quem aprende,
o seu contexto de vida, as suas emoções. Como nos recorda Aristóteles em sua
Ética a Nicômano, “é assunto fácil
conhecer os efeitos do mel, do
vinho, das ervas, da cauterização ou do corte. Mas saber como, quando e a quem
se devem aplicar essas coisas é nada menos que o assunto do médico...”. Com a
educação, nos diz Bruner, se passa
algo parecido. Saber situar o nosso conhecimento no contexto vivo que oferece o problema que se apresenta é o
papel do educador.
Na construção dessa escola
pública, é preciso esclarecer muitas incompreensões sobre a cultura da
diversidade. Por exemplo: há uma grande cultura legislativa sobre a cultura da
diversidade e, no entanto, está se produzindo uma contracultura na prática
escolar. Os princípios da LOGSE – Lei de Atenção à Diversidade não estão se
desenvolvendo em nossas escolas, e isso precisa ser reconduzido, simplesmente
por que se estão violando os direitos
que as pessoas diferentes têm.O problema que temos hoje nas escolas é,
por um lado, epistemológico, ideológico e ético e, por outro, eminentemente
educativo. E temos que resolver todos juntos esse problema, se estamos
convencidos de que a escola do século
XXI deve ser uma escola sem exclusões.
Essa nova cultura escolar vai
partir do princípio geral de que
todas as pessoas podem ser educadas. Essa é uma afirmação poderosa, já que
dizemos que “todas” e não “algumas” pessoas podem ser educadas. Admitir esse
princípio geral é mudar todos os referenciais do currículo, e o currículo
precisa saber construir pontes cognitivas entra as diferentes pessoas e as suas
possibilidades para adquirir cultura, já que vamos considerar a escola como o
lugar onde se descobre o conhecimento e se ensina a pensar.
A escola deve, portanto, oferecer um currículo que rompa
com o determinismo psico-biológico das diferenças na aprendizagem como algo
eterno e imperecível, e passe a contemplá-lo como algo suscetível de
modificação. Como diz Maturana: “do ponto de vista biológico não há erros, não
há disfunções, não há menos-valia... em Biologia, não existe menos-valia. É no
espaço das relações humanas onde a pessoa definida passa a ser limitada.”
Aceitar que as pessoas diferentes
são motor de mudança da
escola supõe, a meu ver,
uma mudança tão grande de pensamento do professorado que deve, necessariamente,
ser contemplada em um outro tipo de currículo, centrado na resolução de
problemas reais e mais próximos dos alunos (próximo aos alunos e de grande
interesse e relevância para eles. O próximo é aquilo que está ao alcance da
mão) do que das disciplinas, e que
estas disciplinas se utilizem como apoio para a resolução desses problemas. Um
currículo centrado nas necessidades pessoais e contextuais dos alunos e que lhes permita construir mecanismos e estratégias para familiarizar-se com o
conhecimento, e que o conhecimento adquirido lhes sirva para resolver os
problemas da vida cotidiana.
Assim, o primeiro objetivo do
currículo como o que acabamos de expor é o de focalizar-se no saber ensinar aos
alunos processos e estratégias de racionalização efetiva que possam ser
utilizados na aprendizagem e na resolução de problemas. Ou seja, a cultura
escolar tem que tornar possível que crianças sejam pessoas competentes para
criar seus próprios processos e estratégias de racionalização
(autoaprendizagem). A criança tem
que ser cientista na escola, e o profissional, o mediador do saber, aquele que
cria um cenário para que se
produza o conhecimento.
Nesse processo de construção e de
reconstrução do conhecimento, os alunos adquirem conhecimentos conceituais que
lhes permitem interpretar a realidade; procedimentos e estrutura lógica (senso
comum) como meio para resolver problemas da vida cotidiana, e valores para
melhorar a qualidade de vida social e a convivência. Trata-se de problematizar
a realidade para encontrar as suas possíveis explicações. A educação há de
permitir a autonomia cognitiva e moral dos alunos, e não a dependência. As famílias e os professores precisam
compreender que os alunos precisam de algo mais – de muito mais – do que
informação (instrução) para adquirir esse patrimônio cultural que lhes permita
ver criticamente que as diferenças são
valores, mas que às vezes as condições históricas e ideológicas impostas
pela cultura dominante ressaltam as desigualdades entre uns e outros.
É a qualidade das relações
que tornam possível a cultura da diversidade. A construção de um discurso comprometido para viver
democraticamente na escola exige a superação da visão tecnocrática e
reprodutora na que as vezes se
encontra imersa a própria escola, empurrada por essa cultura competitiva e
pós-modernista. É dessa superação que se necessita para instalar-se a cultura
da cooperação.
Nos meus diversos contatos com os
professores, tanto em reuniões quanto nos trabalhos dos Coletivos de Renovação
Pedagógica, temos refletido sobre como nos integramos a esse sistema e vamos exercendo um trabalho de ser integrador de outros
companheiros. Afirmações como “eu sou apolítico” é o que o sistema espera ouvir
dos seus componentes, e precisamente esse apoliticismo é a razão principal de sua eficácia
política. Ensinar por ensinar é
absurdo.
A peça-chave, o instrumento
central da ação político- pedagógica na escola, é o docente. Não vale dissimular
o problema aduzindo neutralidade ou apoliticidade. O docente, queira ou
não, consciente ou
inconscientemente, exerce uma importante ação política. os educadores que não
fazem política praticam, de fato, a política da submissão ao mais forte. Sua
neutralidade é o que os converte em instrumentos facilmente manejados pelo sistema.
Certamente as instituições
escolares não são recintos incontaminados, fechados para que o professor
concentre a sua atenção e o seu trabalho exclusivamente porta adentro. Em momentos
de crise pedagógica (no sentido em que fala Gramsci), não há outra saída que
fazer uma profunda reflexão sobre o sentido, o significado e as funções de ser
professor. Concordo com Snyders, quando ele diz que as responsabilidades do educador jamais poderão ser
desconectadas da realidade social
na qual a escola está inserida. Não nos iludamos acreditando que podemos impulsionar uma
boa escola em uma má sociedade, nem percamos de vista que cada sociedade tem a
escola que melhor responde aos seus postulados políticos. “O movimento para
transformar a escola não é mais do que o movimento que vai transformar a
sociedade. cada avanço parcial vale por si mesmo e como prova de que é possível
a transformação total” (Snyders, 1976, p. 242). Ou, como diz Lobrot: “o que a
sociedade de amanhã será ou não será através da escola o
saberemos à medida em que saibamos qual é o tipo de sociedade que estamos
dispostos a impulsionar e à medida
em que, politicamente, aceitemos a responsabilidade que nos cabe nesta tarefa.
Tarefa que, para nós, professores, é antes de mais nada a de esclarecer o
processo político como matéria
educativa, mesmo quando isso nos obrigue a ‘voltar o processo de educação contra os fins designados pelo sistema’
“. (Lobrot, 1978, p.186)
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