quarta-feira, 20 de março de 2013

Alfabetização na Síndrome de Down - Pedagogia do Conhecer

Admiro muito o que Gil Pena escreve sobre inclusão no seu blog Pedagogia do Conhecer, suas observações sobre alfabetização são muito esclarecedoras, repito-as aqui:


Blog Pedagogia do Conhecer
Alfabetização
GIL PENA

Olá Roberta,
Muito legal o seu interesse em tentar “se encontrar” e ensinar ao seu aluno a ler e escrever. Vamos começar pelo começo: veja o seu aluno como seu aluno, não o veja como “SD”. Os comportamentos que ele apresenta têm de ser encarados como os comportamentos de um aluno, não como de um aluno com “SD”. Em toda e qualquer situação, aja com ele como agiria com qualquer aluno, em relação aos aspectos afetivos, de autonomia, das normas etc.
A segunda coisa é a confiança. Para ensinar, é necessário que você acredite na pessoa que vai aprender, que ela vai realmente aprender. Essa confiança gera o compromisso de que você vai investir tudo para que ela realmente aprenda. Se ela não entende uma coisa, explique de novo, de outra maneira, peça a um outro aluno que lhe explique, tente de outro jeito, se naquele dia não foi possível, pense de noite em alguma nova estratégia, em algo nunca pensado, e que  pode funcionar naquela situação. Invista na sua própria compreensão do problema, leia mais, pesquise, tudo para poder elaborar uma nova maneira de ensinar, não apenas para aquele seu aluno, mas para todos os seus alunos.
Um outro passo: aprofundar nos aspectos de aprendizagem da leitura e da escrita. Um “alfabetizador” tem de ter como companheiros, autores como Paulo Freire e Emilia Ferreiro (Também Myrian Nemirovsky, Liliana Tochinsky, Ana Teberosky). Aprender a ler e a escrever não é ser introduzido a um código. A escrita é muito além de um código, ela tem usos, finalidades, significados, que não podem ser reduzidos ao código. Hoje se chama tudo isso de letramento, mas a questão não é o nome que se dá. Desde que a criança nasce, ela está imersa num mundo onde a palavra escrita desempenha múltiplas funções e ela tem que gradativamente apropriar-se dessas funções, para fazer uso dessa valiosa ferramenta cultural. Em casa, também é fundamental que o uso da palavra escrita seja incentivado pelo exemplo dos pais, que fazem uma lista para ir às compras, lêem um livro técnico ou um romance, usam o computador, para comunicar-se ou para pesquisar determinado
assunto, vêm indicações escritas no trânsito, nos ônibus, nas lojas, etc…
Ainda, é preciso entender como ocorre esse processo de alfabetização. Há determinados estágios dessa construção que podem ser utilizados na elaboração de um diagnóstico. A partir desse diagnóstico, estratégias de intervenção são especificamente desenvolvidas para auxiliar o aluno a superar aquele estágio. Essa compreensão do processo de aprendizagem é importante, para perceber pequenos avanços que a criança faz, às vezes com grandes esforços. Há professores que consideram que a aprendizagem da leitura e da escrita é quase mágica: um dia o aluno está maduro e o conhecimento ”brota”. Mas não é assim: a leitura e a escrita são um conhecimento lentamente construído, pelo conhecimento das letras, a compreensão de que as letras correspondem a sons, mas que sozinhas as letras não produzem todos os  sons, que existem regras que orientam a ortografia, que o estilo para escrever um memorando é diferente do estilo um bilhete, que escolhemos palavras diferentes para situações diferentes… e por aí vai.
Para finalizar essa mensagem (que jamais esgotaria o tema), diria que esse aprendizado tem de ser particularmente prazeiroso. Há um grande investimento da criança nesse processo. Se ela não encontra um caminho (“até o seu professor ‘está perdido’), ela vê como inútil um grande esforço e cria grande resistência ao que está escrito, como algo que pertencesse a um universo do qual ela não faz parte. Cria-se um bloqueio que posteriormente é muito difícil de remover.
Bem, Roberta, só espero que a minha mensagem tenha lhe indicado um caminho (ou muitos caminhos). Fico a disposição para poder ajudar mais, se achar que os caminhos que indico podem ajudá-la
Alfabetização II
Olá a todos,
A alfabetização não é um bicho de sete cabeças, talvez de três, um cão cérbero, não sei mesmo se é essa a entidade, aquele bicho do Hagrid que tomava conta da pedra filosofal, na história do Harry  Potter.
A alfabetização, dizendo assim, é um marco, algo fundamental em  nosso adentramento dentro da cultura. A progressão na vida acadêmica depende da aquisição dessa ferramenta.
Em geral, não duvidamos que uma pessoa comum, se ensinada, conseguirá aprender a ler. Em geral, o não letramento atribuímos à falta de oportunidade de aprender. Não sei se todos temos uma idéia apropriada do que é a alfabetização, não é apenas o domínio do
código, decifrar palavras e sílabas, é desvendar o sentido, atribuir sentido. Escrever e ler, como ferramentas culturais humanas, são carregados de sentido, são usados para cumprir necessidades específicas do viver humano.
Antes de chegarmos a escola, já conhecemos a palavra escrita, sabemos de seu uso, há um empenho em compreendermos o que está escrito e nos esforçamos nesse sentido. A alfabetização, por assim dizer, tem uma pré-história, que é menosprezada.
O Fabio disse da confiança, mas tem algo mais na nossa relação com as pessoas com síndrome de Down que as distanciam da leitura. Muitos falamos que cada um tem seu conjunto de livros, sua pequena biblioteca, mas quantos nos dedicamos a deliciar as leituras com eles? Quantos, os convidamos a participar da elaboração de uma lista de compras, de ir ao supermercado com eles, procurando pelos produtos listados? E nos seus desenhos, o quanto nos preocupamos em oferecer detalhes, que possam ser acrescentados, como os olhos, sobrancelhas, cílios, etc, de modo que possam ir se aprimorando no cultivo desses detalhes. O desenho, como o escrito, é forma de representação. A primeira forma de codificar, decodificar o escrito é pelo reconhecimento do desenho da palavra, não a seqüência das letras.
Há peculiaridades no aprendizado das pessoas com síndrome de down. Mas isso é muito confundido por aí. Não há necessidade de criar um método. Nesse processo todo, o que é necessário é só ensinar. Uma pessoa com síndrome de Down tem mais
dificuldade no aprendizado espontâneo, de captar um sentido naquilo que fazemos, de compreender a sequência pela qual operamos, simplesmente vendo-nos fazer. É preciso mostrar-lhes o que fazemos, porque fazemos.
Todo o tempo, estamos lendo o mundo. Paramos no cruzamento ao ver a placa de pare, mas também no sinal vermelho. Para nosso filhos com síndrome de down, temos de mostrar que o que nos conduz são essas mensagens disponíveis: a placa
com o nome da rua onde moramos, o número da nossa casa, seu nome na sua merendeira, etc.
Alfabetizar é um passo no aprendizado dessa leitura maior de mundo. Um passo que fica grande demais para aqueles a quem omitimos o mundo, não o revelando ou o entregando já lido.
O método, a cartilha surge no mundo em que impera o aprendizado espontâneo dos comuns. A leitura de mundo se oferece a seus olhos como um aprendizado intrínseco. Chegam a escola já sabedores de muita coisa. A escola atua no sentido de sistematizar esse aprendido, mais do que ensinar.
No aprender a ler, vale muito conhecer do uso da leitura, da escrita, esforçar na aquisição da ferramenta. Não é uma tarefa fácil para criança nenhuma. É uma construção, com muitas tentativas, erros, hipóteses, testes. É esse experimentar que os leva a frente. Um bom professor conhece esse processo, esse experimentar, ajuda o aluno no formular de hipóteses, compreende o caminho de seu construir e o estimula nessa construção. Não o repreende ou desanima no equívoco: esse é parte do caminho. È um processo sofrido. É possível que não queiram ir a escola, mesmo por medo de não conseguir.
Nesse processo, não há diferença entre a pessoa com síndrome de Down ou o comum. Ambos aprendem formulando hipóteses, testando essas hipóteses, errando e acertando. Tornam-se leitores na medida em que descobrem o mundo que está aí para ser lido.
Há ainda, acredito, uma certa incompreensão da relação entre “oralidade” e “escrita” e parece que alguns ficam esperando uma certa “consciência” fonológica para dar andamento no ensino da leitura. Há mesmo, me parece, uma dependência, mas não há necessariamente uma precedência de uma sobre a outra. O escrever/ler ajuda na construção da oralidade, fazendo caminho inverso do que usualmente é esperado.
Se devem aprender a ler, e podem, é melhor que seja no tempo de aprender. Tempo de aprender é tempo de ensinar. Ensinar é mostrar o mundo, desde cedo, tão cedo quanto estejamos vivendo no mundo. Porque os vamos deixando crescer sem ensinar-lhes (mostrar) o mundo?
Não posso, por último deixar de sugerir que leiam alguma coisa da Emilia Ferrero que é quem bolou e percebeu essa coisa muito legal da construção da escrita.


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