quarta-feira, 20 de março de 2013

Gil Pena - Estudo sobre o uso da memantina no “tratamento” para Síndrome de Down



Excelente artigo que Gil Pena garimpou:

Estudo sobre o uso da memantina no “tratamento” para Síndrome de Down.


Li com interesse o artigo recente de Boada et al. (2012)(1) sobre o emprego de antagonista de receptores NMDA (N-metil-D-aspartato) no tratamento para síndrome de Down. Particularmente o estudo endereça a possibilidade de que a terapia com memantina possa melhorar o resultado de testes neuropsicológicos, em avaliações de memória episódica e espacial, geralmente consideradas como hipocampo-dependentes.
Dois testes foram usados como avaliações primárias. O teste “PAL” – CANTAB Paired Associate Learning – consiste em caixas dispostas sobre a tela, que são abertas em ordem aleatória. Uma ou mais dessas caixas vão apresentar um desenho ou padrão. Os padrões inicialmente apresentados no interior das caixas são então apresentados no centro da tela, um de cada vez, e o participante deve apontar a caixa em que padrão correspondente estava originalmente localizado. Até 8 padrões podem ser apresentados. O teste é de concepção simples, mas desafiante. Vinte e uma medidas podem ser obtidas como resultado para um ensaio, incluindo erros cometidos pelo participante, o número de tentativas necessárias para localizar o(s) padrão(ões) corretamente, escores de memória e estágios completados.
Outro teste, com características semelhantes, é o Pattern Recognition Memory (PRM – memória de reconhecimento de padrão). Ao participante, é apresentada uma série de padrões visuais e ele tem de identificar, posteriormente, entre duas figuras, qual foi apresentada anteriormente. Os padrões são feitos de tal forma que é difícil de associar um nome às imagens, sendo por isso um teste de memória não verbal.
Vários outros testes foram avaliados como medidas secundárias. Entre eles, o California Verbal Learning Test-II (CVLT-II) – Short Form: (Teste de aprendizagem verbal – California). O teste mede a habilidade de aprender palavras, como um índice de memória verbal episódica de longa duração. Tal teste é conhecido por ser sensível ao funcionamento do hipocampo posterior, com base em estudos de imagem, e também já foi demonstrado que está prejudicado em populações com degeneração e lesões do hipocampo. Aos participantes, é fornecida uma lista de palavras, as quais são repetidas, em cinco ensaios. Seguem-se ensaios de memória e reconhecimento, após intervalos de 10 minutos. Medidas são obtidas conforme o participante consegue identificar corretamente os alvos corretos (soma de acertos nos testes) e a capacidade de discriminação, que leva em conta, o que acertou e também falsos positivos. Diferentemente dos testes anteriores, não consegui encontrar na internet versões disponíveis deste teste, para ter uma idéia prática de como é conduzido.
Um total de 14 medidas foram avaliadas, discutir cada uma seria trabalhoso e extrapolaria as finalidades desse comentário.
Dois grupos de participantes foram avaliados, um deles recebeu a memantina e outro recebeu placebo, por um período de 16 semanas. Nem os participantes, nem examinadores sabiam a que grupo pertenciam os indivíduos. Os indivíduos fizeram testes antes do início do tratamento e ao fim das 16 semanas. Cada indivíduo foi comparado consigo mesmo no início e no fim do tratamento e os dois grupos foram comparados entre si.
As medidas primárias (PAL e PRM) não produziram diferenças estatisticamente significativas entre os grupos. De todas as medidas secundárias, apenas uma das medidas do CVLT-II, resultou estatisticamente significativa (Total free recall).
A discussão de um trabalho dessa natureza pode ser feita por diferentes perspectivas. Há questões conceituais importantes sobre o desenho do estudo e riscos que os investigadores correm ao planejar o seu estudo e avaliar os seus resultados.
Há questões também conceituais relevantes sobre os fundamentos da “neurociência” que dão suporte à gênese de hipóteses, desenho de investigações e modelos de estudo.
Ainda, há questões conceituais relevantes sobre a síndrome de Down e a pessoa com síndrome de Down, que também merecem uma discussão.
Os investigadores científicos estão bem a par da natureza dos erros que podem estar associados aos seus estudos. São conhecidos como o erro tipo I e tipo II. Num estudo como esse, dois grupos foram estudados. Um que recebeu a medicação e outro que recebeu o placebo. Como hipótese nula, os investigadores postulam que não haverá diferença entre os grupos. O estudo é desenhado no sentido não de confirmar a hipótese, mas de rejeitá-la. Assim, se for encontrada uma diferença significativa entre os grupos, os investigadores fornecem subsídios para rejeitar a hipótese, indicando que há um efeito atribuído à  memantina, nas medidas de respostas obtidas, que foram diferentes entres os grupos.
Cada estudo cientifico tem chances de errar e, óbvio dizer, se essa chance for estatisticamente pequena, mais convencidos ficamos de que a afirmação produzida pelos autores do estudo merecem credibilidade. É um jogo de confirmação. O erro tipo I é aquele em que o pesquisador refuta uma hipótese nula, quando em realidade ela é verdadeira. Seria o caso em que tenha sido encontrada uma diferença entre os grupos, quando em realidade não há diferença. Em relação ao estudo em discussão, a única medida estatisticamente significativa foi a dada por uma das medidas associadas ao CTVL-II, resultado que aponta para a rejeição da hipótese nula. A maioria dos investigadores aceita que um nível razoável de erro, a conhecida probabilidade alfa, deve ser menor que 0,05 (ou 5%). Isso indica que há chance estatística de um estudo em cada vinte refutar a hipótese nula, quando na realidade ela não devia ser refutada. Ou seja, o estudo apontaria uma diferença entre o grupo tratado com memantina e o grupo placebo, mas essa diferença não existiria na realidade.
Se é possível errar por um lado, é também possível errar por outro. É o erro tipo II, em que o investigador não consegue refutar uma hipótese nula, quando na realidade ela é falsa. Em termos de possibilidade, há a chance de que a memantina tenha um efeito benéfico, mas o estudo, não tendo conseguido demonstrar uma diferença significativa entre os grupos não teve força suficiente para refutar a hipótese de não efeito. Por medidas econômicas, de praticidade, os pesquisadores aceitam cometer com maior frequencia esse tipo de erro. Na maior parte dos estudos, admite-se uma probabilidade beta de até 0,2 (ou 20%) para esse tipo erro. Ou seja de cada cinco estudos, um pode não conseguir refutar a hipótese nula, em em realidade seria falsa.
O estudo da memantina então não dá ainda uma resposta definitiva sobre o beneficio da memantina entre os portadores da síndrome de Down: não se conseguiu obter dados que pudessem rejeitar a hipótese de nenhum benefício. Exceto por uma das medidas obtidas (de um total de 14 avaliadas), os autores não demonstraram diferenças significativas entre os grupos.
Os autores desenharam o estudo no sentido de reproduzir nos seres humanos com síndrome de Down, os resultados observados em camundongos Ts65Dn, um modelo experimental para a síndrome. Por assim dizer, esperava-se (ou desejava-se) rejeitar a hipótese nula. Após a análise dos resultados, discutem-se aspectos do estudo que podem ter propiciado a ocorrência de um erro tipo II. O aprendizado do estudo é o de favorecer o desenho de outros estudos que, no futuro, possam rejeitar a hipótese nula, seja com a escolha de testes que tenham maior possibilidade de demonstrar uma diferença, seja por modificações no desenho do estudo (seleção e tamanho da amostra, tempo de tratamento, testes estatísticos, etc).
Um segundo ponto a comentar é o papel do hipocampo nos processos cognitivos, pergunta que a neurociência busca esclarecer, mas que no entanto procuro compreender desde outra perspectiva.
Não há como negar que o cérebro humano, em seus dois hemisférios, funciona globalmente, representando rede complexa de neurônios (e de outras células). Além dos elementos estruturais, mecanismos moleculares operam nestas células, mediados, estimulados e inibidos por outros mecanismos celulares.  Neurotransmissores, receptores, com suas enzimas quinase-dependentes, canais iônicos, fatores de transcrição, são elementos que trafegam entre as células e no interior das células, provocando alterações bioquímicas e eletrofisiológicas intracelulares, extracelulares e induzindo estas alterações em células vizinhas. É muito complexo. Mesmo um “simples” neurônio opera com tão numerosas moléculas, que a compreensão de seu funcionamento é desafiante. Em laboratório, é possível observar os efeitos de um composto sobre a inibição ou estímulo a determinado receptor, que provoca cascatas metabólicas intracelulares, com expressão do DNA, síntese protéica, alterações de potencial de membrana, capazes de originar padrões excitatórios variáveis sobre outras células, e destas a outras células, a outras, o cérebro, seus milhões e milhões de neurônios, haverá quem possa compreender o seu funcionamento? Olhamos o cérebro maravilhados, queremos entendê-lo, a mente ali guardada, a memória, a consciência.
A maioria dos estudos neurocientíficos demonstra um padrão de semelhanças entre as células neuronais humanas e a de outros animais, inclusive as de um molusco marinho, a Aplisia, que tem neurônios grandes, apropriados para a manipulação experimental. Diferentemente de outros animais (pelo menos assim pensamos), o cérebro humano é capaz de lidar com linguagem, que além de forma de comunicação, tornou-se instrumento do pensamento. Mais do que processos excitatórios e inibitórios neuronais, de síntese protéica ou outros mecanismos bioquímicos, o pensamento, a memória produzem-se pelo significado, algo que, se não extrapola a própria biologia do cérebro, a desafia.
São domínios de descrição distintos. Um que considera os elementos constituintes do cérebro, neurônios, moléculas, outro que considera todo o organismo, incluindo o seu cérebro, na relação que trava com outros organismos e com o mundo. No primeiro caso, que é visão digamos mais neuro-científica, não é incomum avaliar o cérebro como um conjunto de funções específicas, exercidas por áreas próprias ou grupos de neurônios, como a entrada, processamento, armazenamento e saída de “informações”. Os testes apresentados aos participantes do estudo seguem essa lógica. São baseados em ”informações” destituídas de significado, desenhos sem nome, sem sentido, que devem ser armazenadas, por certo tempo, gerando depois respostas, que são classificadas como boas ou ruim, conforme a reprodução congruente entre a entrada e a saída. Essa função está localizada no hipocampo, seja pela demonstração em tempo real da atividade neuronal nesta área em estudos funcionais de imagem, seja pela perda destas funções em indivíduos com lesão ali localizada.
Numa outra perspectiva, podemos avaliar a relação de todo o organismo (incluindo o cérebro) com outros organismos e o ambiente. Nesta perspectiva, compartilho da visão de Maturana, em que o cérebro funciona e organiza-se como um sistema fechado, cuja operação resulta do operar de seus elementos constituintes, sem que o meio externo possa produzir interações instrutivas sobre o organismo. As superfícies aferente e eferente do organismo não possibilitam trânsito de informação entre o próprio organismo e o meio, mas apenas ocasionam mudanças estruturais, como as que ocorrem entre duas células, num espaço sináptico. Como observador, posso fornecer explicações sobre como operam mecanismos de memória, atenção, etc, avaliando como ocorre a interação entre dois organismos, em seu espaço de conduta. Explicações são mecanismos gerativos, ou seja produzem o fenômeno que queremos explicar. Posso entender a memória recente, que corresponde à função do hipocampo, como andaimes ou rodinhas de bicicleta. São estruturas de pensamento que são necessárias por determinado período, enquanto uma forma de conhecimento se consolida, se sedimenta. Esse mecanismo gerativo possibilita um modelo de intervenção, que são os formatos de ação conjunta, a participação de um mediador que apresenta elementos da cultura, possibilitando o desenvolvimento das funções cognitivas.
Há portanto outras maneiras de compreender uma função psicológica.
Um terceiro e último ponto, o mais importante e necessário para essa discussão é sobre questões conceituais sobre a síndrome de Down e a pessoa com síndrome de Down. Neste aspecto, os autores do artigo pecam ao propor tratamento para a síndrome de Down, implicando que pessoas com trissomia do cromossomo 21 carregam defeitos constitucionais em seus circuitos neuronais que necessitem de correção farmacológica. Já desde há muito, procuro construir uma idéia diferente, propondo que as pessoas com síndrome de Down, não devam ser taxadas de doentes, pelo fato de terem um cromossomo 21 extra. Mesmo que possam me enumerar várias características que os diferenciam das pessoas euplóides, eu prefiro firmar no que guardam como semelhança, a sua essência humana, o inacabamento, a possibilidade de construção da competência, a capacidade de superação.
Se a tal ciência, a que se publica em artigos científicos, propõe que devamos tratar a síndrome (pela síndrome em si), devo discordar da ciência. Neste ponto conceitual básico, talvez tenha o artigo perdido toda a validade como ensaio científico. Tivessem os autores uma melhor indicação sobre o que tratar, poderiam ter alcançado resultados mais significativos.
Referência bibliográfica:
(1) Boada R, Hutaff-Lee C, Schrader A, Weitzenkamp D, Benke TA, Goldson EJ, Costa AC. Antagonism of NMDA receptors as a potential treatment for Down syndrome: a pilot randomized controlled trial. Transl Psychiatry. 2012 Jul 17;2:e141. doi: 10.1038/tp.2012.66. PubMed PMID: 22806212; PubMed Central PMCID: PMC3410988.


http://pedagogiadoconhecer.wordpress.com/2013/01/13/estudo-sobre-o-uso-da-memantina-no-tratamento-para-sindrome-de-down/

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