quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Inteligência e aprendizado em Síndrome de Down - Projeto Roma


INTELIGÊNCIA E APRENDIZADO EM SÍNDROME DE DOWN – PROJETO ROMA[1]


O aprendizado e a inteligência não são processos determinísticos, segundo o projeto Roma, aprender é muito mais que transmitir e acumular conhecimentos, na realidade a proposta é muito ampla e abrangente, muito mais do que a inclusão escolar simplesmente e inclui toda  uma transformação cultural, que veja o diferente como pessoa, como ser humano que é, num espaço de convívio humano. Assim, temos que romper com a visão de diagnóstico que temos. O diagnóstico é importante, mas não é um vaticínio final. É sim, um ponto de partida. A partir do diagnóstico, é que vamos traçar as estratégias para alcançar o desenvolvimento cognitivo, comunicativo, afetivo e de autonomia.

Na visão do projeto, temos também que romper com determinados paradigmas que nos colocam as ciências, como a medicina, a psicologia, a sociologia e a pedagogia. Se de uma visão instrumentalista, as pessoas com Síndrome de Down são doentes, retardados, subnormais e deficientes; temos que mudar o paradigma para sadios, diferentes, normalizados e competentes. A tal curva de Gauss (da distribuição normal), muito mais que uma descrição estatística, é uma escala de valores. Os valores são coisas da cultura. E é essa cultura que temos que transformar.

A idéia da socialização vem também por aí. Podemos ver a inteligência não como uma coisa inata, mas uma coisa que se constrói a partir da cultura. Aliás, em geral determina-se se uma pessoa é inteligente (embora a inteligência não seja um atributo) pela freqüência de comportamentos inteligentes que apresenta diante de determinadas situações. E esses comportamentos humanos têm sua adequação valorizada culturalmente. Também assim, se transformamos a cultura, abrimos espaço no mundo para o jeito inteligente próprio de ser de cada pessoa. E na mesma escola estudarão todos, numa comunidade cooperativa, com diferentes modos de aprendizagem.

Nesse caso, o "cérebro é contexto" e as funções cerebrais superiores
têm origem na cultura. Isso permite supor uma possibilidade de reorganização celular e molecular do cérebro como um processo fisiológico. Desde a perspectiva Vigotskiana, o desenvolvimento cerebral (exatamente essa reorganização celular e molecular do cérebro) é "puxada" pela aprendizagem.

Vamos entender a coisa dessa maneira: o indivíduo tem de enfrentar uma tarefa para a qual o seu cérebro não está pronto. Alguém lhe explica o que tem de fazer, mostra como se faz e faz junto: são os formatos de ação conjunta. No cérebro do aprendiz, essas moléculas de adesão dão um suporte inicial entre os neurônios e os astrócitos, possibilitando a ativação de mecanismos de proliferação e diferenciação. Isso leva à conexões sinápticas novas entre neurônios, colocando em funcionamento novas áreas e integrando diferentes regiões do cérebro, na medida em que o aprendiz vai adquirindo autonomia. Quando o aprendiz já tem autonomia na realização da tarefa, seu cérebro já tem células proliferadas e diferenciadas, com conexões apropriadas e integradas.

Basicamente, podemos entender essas moléculas de adesão como pequenos andaimes ou escoras, que permitem a reestruturação celular/neuronal cerebral. São necessárias na medida em que o "conhecimento" é construído, mas na medida em que seus fundamentos estão "alicerçados", vão gradualmente tornando-se desnecessárias.

Podemos utilizar a metáfora da construção de uma casa por um pedreiro. No caso de compararmos a construção do conhecimento no cérebro de uma pessoa com Síndrome de Down (ou não!), com a construção da referida casa, temos que seguir os passos que permitam que o conhecimento seja estruturado para a finalidade que será útil no processo de resoluções de problemas na realidade em que a pessoa vive. Não basta simular os processos de ensino, como não basta erguer paredes que não dêem sustentação ao teto. É isso o que acontece nas escolas quando tratamos as crianças e as pessoas com a síndrome como “paredes” que não dão sustentação aos tetos, ou seja, educação simulada para cumprir uma obrigação de “inclusão dos diferentes”.

Por exemplo: quando nós adaptamos o currículo ao aluno com Síndrome de Down, nós estamos partindo do princípio que ele não tem capacidade para aprender determinados conteúdos e, com isso, estamos definindo o seu futuro de uma forma medíocre. Isso faz com que a pessoa que poderia desenvolver sua inteligência e seu conhecimento não o faça e, logo, acaba condenada à uma situação de deficiência (lembre-se que é o contexto que faz de uma pessoa um deficiente).

O que nós temos de adaptar não é o conteúdo, mas a pedagogia às situações de aprendizagem (ou melhor, às situações de "ensinagem"), adequando os contextos à forma que cada um constrói o seu conhecimento. No Brasil, o que se chama de adaptação curricular não é ensinar a mesma coisa (conteúdo) de forma diferente (pedagogia), mas ensinar menos, ensinar mais simples, tratar a criança como café com leite...

As pontes se constroem para que a criança possa ter acesso ao mesmo conteúdo (currículo) que as demais crianças e são uma ação pedagógica e não uma simples adaptação (mutilação) curricular.

Os formatos de ação conjunta, andaimes e pontes são conceitos importantes da proposta pedagógica do projeto Roma. Já que a analogia é com construção, alicerce, andaimes e pontes coloquemos então os "neurônios a obra".

O ser humano é imprevisível nas suas possibilidades de desenvolvimento. Temos que considerar também as condições orgânicas da pessoa. Condições orgânicas não se limitam a genética. São todas as características do ponto de vista biológico, onde a genética aponta possibilidades. Mas, como já disse Reuven Feuerstein, "os cromossomos não têm a última palavra". O ser humano se constitui na interação dos aspectos biológicos e sociais. Então, não dá pra falar em potencial, seja genético, orgânico, social, o que seja.

Podemos pensar em condições mais ou menos favoráveis. Quando as condições são desfavoráveis em um aspecto, temos que investir muitíssimo nos outros. A preocupação deve ser sempre com o ponto de partida, com as oportunidades que cada pessoa tem para se desenvolver. O ponto de chegada, poucas vezes é previsível. O ser humano surpreende!".

Ainda que a gente não possa excluir questões genéticas no desenvolvimento, tanto o Feuerstein (citado acima) e o Melero já provaram que a inteligência e o conhecimento são coisas que se constroem, independentemente do fator genético. Não existe determinismo social (que exclui qualquer fator inato dos seres humanos), mas usar a terminologia "potencial genético" remete ao determinismo biológico, que sempre foi muito mais nocivo para a humanidade.

O grande erro é acreditar que exista qualquer tipo de determinismo e que a vida humana pode ser "determinada" exclusivamente por um único dos seus aspectos. Cada aspecto é relevante (genético, cultural, social, econômico), mas nenhum deles, sozinho, leva a uma solução para todas as questões.

Enquanto acreditarmos que só a genética, ou só o social, ou só o econômico, definem a pessoa, vamos continuar a criar monstruosidades conceituais, como continuar falando em medidas de inteligência.


FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO TEXTO


Esse texto, como muitas atividades desenvolvidas pelo Projeto Roma se baseiam em Vigotsky ao defender que não se faça adaptações curriculares para pessoas com Síndrome de Down e que não utilizem o recurso de "simplifição" do currículo.

Para tanto temos que falar um pouco do Vigotsky, pois o entendimento desse autor é  chave para entender o projeto Roma. Uma das grandes contribuições do Vigotsky foi a elaboração teórica sobre a chamada ZDP (zona do desenvolvimento próximo), que é a região onde transitamos do desenvolvimento potencial (aquele que não temos totalmente garantido) e o desenvolvimento real (aquele já garantido). É nessa região que ocorre o nosso aprendizado. Assim, para Vigotsky, é o aprendizado que garante a passagem do desenvolvimento potencial para o desenvolvimento real. Por isso dizemos que a aprendizagem "puxa" o desenvolvimento.

Agora um parêntese:

Um exemplo da utilização da ZDP é o texto acima, nesse há uma tentativa de se explicar de uma maneira clara, mas é possível que não tenha  ficado claro para todo mundo. Para aqueles a quem não ficou claro,  digam o que conseguiram entender. Elaborem uma hipótese  sobre o que está escrito. Formulem uma pergunta. Além de ajudar a  elaborar explicações melhores, ao formularem perguntas sobre as dúvidas,  vocês estarão colocando em cena um desenvolvimento potencial, o que  os colocará em sua própria zona do desenvolvimento próximo, e assim  abrindo caminho para o aprendizado.

Voltando agora ao tema:

Se é aprendizagem que "puxa" o desenvolvimento, temos de trabalhar  essa aprendizagem ao máximo. Ainda para Vigotsky, as funções mentais  superiores, se originam na cultura. A atenção, a percepção, a  memória, o processamento das informações, a planificação, são todas  funções mentais com origem cultural. O nosso cérebro trabalha com
essas ferramentas culturais. Durante o desenvolvimento dessas  funções, passamos por um estágio em que essas funções são externas,  mas depois as internalizamos. Ou seja, são ferramentas culturais  apropriadas pelo cérebro humano. Quanto melhores as ferramentas
disponíveis, melhor o cérebro humano desempenhará suas funções.

Um pequeno comentário sobre as ferramentas culturais:

Vivemos num mundo cultural em transformação, com novas ferramentas e significados culturais surgindo a cada dia. Há cerca de 20 anos,  seria impossível que a um clique se distribuísse quase  simultaneamente uma mensagem como essa aqui a 1200 pessoas. Hoje o  computador e a teia (web) tornaram isso uma realidade: é uma nova  cultura, e meu cérebro, de alguma forma, trabalha de maneira distinta com o uso dessa ferramenta.

Na aprendizagem humana, é necessário que tenhamos práticas humanas significativas, com ações que tenham sentido. Por isso, se trabalha  com elementos do cotidiano. Se vamos estudar mamíferos, faz mais sentido observar o cachorrinho que se tem em casa, do que usar a capivara como exemplo. Se tiver de estudar a capivara, é melhor programar uma visita ao zoológico, fotografar o bicho, ler no site do zôo, qual é a sua alimentação, hábitos reprodutivos, etc., Estabelecer pontes entre os contextos, significa que a escola e a família devem potencializar o aprendizado, criando estratégias em casa e na escola para superar as dificuldades que surjam.

Dentro da teoria manejada pelo projeto Roma, a retenção não se justifica. Por um motivo simples: se um aluno não aprendeu um ano inteiro e for obrigado a repetir tudo de novo, sem mudar nada, vai continuar sem aprender. Para aprender, tem de mudar o jeito de ensinar, descobrir de qual jeito aquele aluno vai aprender. Só não podemos duvidar de que ele vai aprender.




[1] Texto produzido a partir de observações de Fábio Adiron e Gil Pena, membros do Grupo Síndrome de Down – http://br.groups.yahoo.com/group/sindromededown/.

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